Eufemística – a vi tantas e tantas vezes – via, na mesa de bar, correr na garrafa de cerveja uma gota após outra. Ela conversou comigo. Os pronomes pululavam, ela disse,
A vida de Bach era o bar, ela disse-me, que vinha todas as manhãs e saía tarde da noite, quando não virava a noite. É verdade! conclui.
Era, como era, a vida de todas as figuras que frequentavam o bar de Bach, ela deve ter sugestionado talvez por fruição. Esta exegese parece que não surtia nenhuma verossimilhança com o dia a dia no bar de Bach; digamos que, sim, e, assim, não se estraga uma amizade. Ficamos nessa lenga-lenga enquanto corria outra lágrima na garrafa de cerveja.
A catarse de Eufemística nem sempre era catártica. Eu ficava dentro dos olhos dela, e conseguia vê-la pela sua estética, apesar da mimesis que ela fazia dos santanenses, como se quisesse os diminuir. Eufemística com seu ar superior e o sotaque do sul. Esse comportamento no Sul do Brasil não é ignorado.
– O veio veio? quis saber Onomatopeia e o seu querer saber emitiu diante do bar semelhante grito. Vovô reclamou com Vovó:
– Por que Onomatopeia age sempre de maneira tão escandalosa!
Esta indignação de Vovô ficou sem a resposta de Vovó, que lhe entortou a boca e deu muxoxos de desprezo. Vovô não gostou dos muxoxos de Vovó.
– Ora se isso é jeito de agir com a língua! Vovó desconsiderou o assunto de Vovô. Falar se o veio veio. Nunca aprovei tirar acento da sílaba tônica destas paroxítonas que terminam em ditongos abertos. Coisas do Novo Acordo...!
Polissíndeto, em um canto de parede, dividia o domingo, sete, com Mais, Mas, Conjunções, Porém, Contudo, Entretanto e Todavia.
– Lembra-se?
– Como poderia esquecer!
– Me lembrava como se fosse ontem.
– Mas também?
– Mas e Mais.
– E Todavia?
– Entretanto, lembra-se?
– Lembrar-se de quê?
– Traz outra rodada! pediu Polissíndeto. E substitua o prato vazio por outro de sarapatel.
– Contudo e Porém, naquela rua acima da Rua Nova, perninhas finas, os braços eram canetinhas. O pastor formou o pelotão, veio a banda do grupo...
– E não foi do Ginásio!
– Era?
– Os braços atrás das costas...
– ...o pastor ia e voltava. Sério. Uma vara de marmelo em uma das mãos.
O padre, furtivamente, entrou e saiu do bar.
– Ele veio comprar alguma coisa, Bach?
Assíndeto jogava cartas com Você.
Vinha da rua o barulho da récua.
– Era Plutocrático?
– E não era, homi!
– Mas nem em dia de liberdade Plutocrático dá descanso as bestas de carga.
– As cavalgaduras de Plutocrático morrem engatadas! disse Metáfora às gargalhadas; dobrou em uma, dobrou em duas, dobrou em três e contagiou o bar de Bach com gargalhadas; gargalhava Omissão, que distribuía camisetas e bonés da sua campanha, gargalhava Elipse, que era um verdadeiro alambique como se sabia desde o início dos tempos. Pleonasmo, sisudo, jogava sinuca. E Redundância com umas cinco caixas de fósforos abertas, os palitos amontoados na mesa do jogo de dama.
Redundância e Pleonasmo julgaram por conta própria e decidiram viver à cidade conforme a cidade é. Gêmeos sem amigos, sem pais, viviam de ganhar a vida com jogos de azar. Os irmãos recusaram o emprego de eutanasiar, desde que saíram do Recife, e moravam em Santana onde se alimentavam com bicos.
– Notícias de Ironia, Eufemística? disse Bach. Ficou à espera da resposta, que não veio. Ele passava a mão no cabelo, no bigode, a camisa aberta no peito, passava a mão nos braços, na boca, os dedos nas sobrancelhas.
Antônimo demonstrou vergonha alheia da insistência de Bach.
Exagero, bêbado, deixou cair o copo. Voou caco de vidro até na rua.
– Vai pagar, gritou Bach, cada centavo.
Antítese foi ao balcão pedir a conta das cervejas que perdeu no jogo com Pleonasmo.
Anáfora embaralhava cartas. Repetição contava moedas.
– Não se lembrava do pastor?
– Não! disse Todavia.
– Gradação, você se lembra?
– Nunca me esqueci!
Gradação começou a pormenorizar as ruas pelas quais alunos passavam, os moradores de Santana, os desfiles, as bandas fanfarras que festejavam o dia 7 de setembro.
Hipérbole acendeu outro cigarro.
Toque-toque, toque-toque, toque-toque... Entrou Metonímia e foi direto ao balcão.
– Dois quilos de Independência.
– Este coalho, disse Bach, é o melhor...
– ...do mundo!
– Eis aí uma verdade! disse Hipérbole.
– Não exagera, poeta.
Hipérbole, na primeira mesa ao lado do balcão, rabiscava um caderno:
“As gaivotas em seus voos de sonhos
“Os peixes em seu mundo aquático 
“Sob a visão de fome que as gaivotas em seus sonhos sonham
“Bailam os peixes ágeis, relâmpagos 
“Ganham o espaço e no mergulho dançam 
“Sobre as ondas os peixes em cardume avançam 
“Ávidas gaivotas no silêncio planam
“Os zumbidos voam quais gaivotas tontas
“O olhar tudo abraça com o laço da esperança
“E essa hora da manhã de sol
“No vaivém do tempo que os passos alcançam
“E os passos vão ao seu encontro
“Feito o vento que sopra sobre o espanto
“Os olhos alcançam o silêncio.” 
Hipérbole era poeta de único poema. Era o primeiro a chegar, e saía por último às vezes. Aquela era a sua mesa; se quisesse lhe decretar guerra era só sentar-se na “mesa do poeta.” Sobre ela, previamente, Bach levava um caderno e canetas. A cerveja não podia esquentar.
– “Sob a visão de fome que as gaivotas em seus sonhos sonham. Bailam os peixes ágeis, relâmpagos”, disse Personificação. Hipérbole dizia-se honrado em ouvir Personificação repetir os seus versos.  
Personificação jogava cartas com um cigarro apagado entre uma orelha e a cabeça, e outro aceso no canto da boca. O rádio, no bar, tocava o Frevo do Reencontro.
Ouvia-se com frequência, por mais que aumentasse o volume do rádio, a voz do Imperador deposto. Ele repetia:
– No presente, eu demovo, tu demoves, ele demove, nós demovemos, vós demoveis, eles demovem; no pretérito imperfeito, eu demovia, tu demovias, ele demovia, nós demovíamos, vós demovíeis, eles demoviam; e, no infinito pessoal, por demover eu, por demoveres tu, por demover ele, por demovermos nós, por demoverdes vós, por demoverem eles.
Os presentes, no bar, resolveram fazer elucubrações e deboches sobre a Associação das Aranhas. Começaram a diluir a fé de quem acreditava no poder das aranhas.
– A humildade vence a petulância! disse Bach num gesto que demonstrou ser um pedido de perdão à Eufemística.
No rádio, O Frevo do Reencontro. No casarão vizinho, os berros renitentes do Imperador deposto; na mesa próxima ao balcão, os versos de Hipérbole.
– Notícias de Ironia, Eufemística?