A TRAIÇÃO EM TEMPOS HEDONISTAS
CONTOSMarcello Ricardo Almeida 21/09/2025 - 22h 59min0
–Toda causa gera consequências, senhoras.
Mas isso não foi o suficiente, porque mais cedo, mais tarde levaria à morte de Eufemística. O que era a vida sem prazer? disse Apólogo; Fábula discordou.
– Senhoras...!
Bach, com aqueles óculos de lentes miúdas na ponta do nariz, arregalava os olhos e falava sobre o mundo de Eufemística como vontade de representação. As freguesas em roupas coloridas, agitavam os braços gordos, magros, longos, curtos, atacavam o dono do bar à procura do dolo e da culpa, e protestavam com parergas e paralipomenas. As vozes misturadas a outras que falavam de coisas acessórias e omissões atraíam agouro, competiam com o voo dos urubus. Bach pedia que deixassem estas coisas de ciúme, coisas de traição; vivíamos já outra época, vivíamos em tempos hedonistas, ele disse, deixassem estas coisas fora do texto quando não se compreendia o contexto.
E ninguém queria ouvir o dono do bar. E os lábios, no auge dos protestos, simbolizam a tristeza na máscara do teatro como se anunciasse uma tragédia. Cabelo em pé, com as mais variadas tintas, agitava a cabeça como se tivesse a ponto de atacar Bach e desconstruir a narrativa.
– Ó gente, me deixe trabalhar! disse. Fosse procurar algum prazer na vida.
E, pelas palavras de Bach, o tema central era fragmentado. Esperava-se, na pós-modernidade, a liquefação? Não se soube mais quem era o ocupante na cadeira da principal personagem.
O conflito crescia sob os óculos de Bach. O desfecho antevia a tragédia. O Diário publicou, domingo, 21, uma charge com Lampião e Eufemística em um jogo de baralho; prometia uma sequência de reportagens nas próximas edições. Alexandrino Escansão falava poemas de cordel. Fábula priorizava a moral, como fazia Apólogo, só que se diferenciava deste porque ele usava os seres sem vida, ela animais que mimetizam pessoas.
A cidade cobria-se de contos. Faziam tirinhas os quadrinistas, e crônicas os folhetinistas.
O alfaiate e violeiro cego, Alexandrino Escansão, diferente dos poetas de cordel que se projetaram no espaço cósmico com sete sílabas poéticas em cada verso na aeronave Estrofe de seis versos. Estes cordelistas, que se descobriram poetas, encontraram no travesseiro da Fonética o sonho da sílaba tônica. E fazia Escansão versos para serem ouvidos em decassílabos heroicos, renascentistas, nas águas do Panema, quando havia água no rio. Corriam versos de Escansão no encadeamento das águas sobre as pedras que afloram na plástica sonoridade das lavadeiras – enquanto elas resistiram em Santana – com acentos nas sextas e décimas sílabas.
Não fui pai, quando devia ter sido; já bebi gota a gota todo este meu grito, disse o poeta Alexandrino Escansão no balcão do bar. Bach olhou o copo e lhe deu outra dose. Nunca tive tanto medo, disse o dono do bar, quando cheguei em São Paulo.
O Sr. Plutocrático voltava com as burras cheias.
Antítese falava sobre o seu casamento. Hipérbole lutava contra as rimas. Anáfora reclamava do padre ao batizar dois de seus filhos. E procurava Anáfora nos bolsos o que lhe restara.
Santana possui um ar de antiguidade na chuva, que é escassa e peculiar.
– Isso é chuva?
– É.
– Há quanto tempo não nos encontramos!
– Fim do inverno, as nuvens choram e recusam-se a ir embora.
– Desconfiei.
– Hoje não é domingo?
– É.
– Vinte e um?
– Sim.
– É por isso.
– Não existe lugar melhor no mundo.
– Como Santana?
– Quando chove.
– Você acha?
– Passei uma temporada na Floresta Amazônica.
– Conheceu os igarapés?
– Me banhei com as piranhas.
– Mais dois dedos?
– Encha o copo.
O padre era o segredo em pessoa. Entrou. Foi ao balcão. Estendeu a mão fechada a Bach que a recebeu com a mão aberta. O padre pegou um embrulho da mão de Bach, e afundou o que tinha na mão fechada no bolso do calção. Saiu o padre sem olhar para ninguém. Os fregueses acompanharam-no com o olhar. Na sombra que acompanhava o padre, os fregueses viam as confissões feitas de joelho. Um contou o pecado de jogar bituca acesa e ver o sapo rapidamente engolir e desengolir. Outro contou que levava sal ao Panema e onde encontrasse sapo lhe jogava uma mãozada de sal "generosa", na palavra do confessor, nas costas da vítima que fugia aos pulos. Sem falar do que eles fizeram às galinhas, aos porcos, aos cães, às jumentas. Pagam o dízimo, contribuem no ofertório. O padre tinha todos os segredos do mundo. O governador também se confessava com o padre. Confessava-se o magistrado.
Padre, um sujeito oculto riscou as paredes onde figuravam a propaganda de minha modesta campanha. Fui indagar ao padre quem escreveu "Jesus vai voltar." Omissão considerava covardia fazer o que fez este sujeito oculto. Padre, disse, quando Jesus voltar este sujeito oculto terá coragem de gritar: Crucifique-O? O padre saiu do bar sem olhar o lado esquerdo e o direito. Ficou pouco tempo frente a frente com Bach. E o padre, cabisbaixo e rápido, deixou o bar, alcançou a calçada alta, atravessou a rua, subiu a ladeira, dobrou a esquina; foi como se o padre sequer tivesse estado ali. O padre sempre tirou nota baixa em História, disse Omissão; Antítese anuiu ao amigo candidato com quem estudou no grupo escolar. Ele era fraco em Geografia, em Música e em Arte, né? disse Omissão. Mais fraco do que caldo de batata. E em Português, né? Tropeçava nas palavras, afogava-se nas sintaxes, confundia-se na semântica, errava nas classes gramaticais. Era bom na Matemática, né? Tinha na cabeça uma tabuada e o Teorema de Pitágoras. O quadrado da hipotenusa, no triângulo retângulo, sabe dizer se ainda é igual à soma dos quadrados dos catetos?
Metonímia dizia a Bach que acordou como se a sua vida continuasse entre dois penhascos ligados pela corda na qual ela andava dum lado a outro.
O Sr. Plutocrático se foi com as burras cheias.
Personificação reclamava do fim do casamento. Ontem, disse, por um triz não fiquei milionário. Diga os números da sorte? Omissão prometia o paraíso.
Na porta do bar, Assíndeto viu o Sr. Plutocrático que voltava com o relho atrás das burras cheias.
– Ó comadre, somos todos proletários! disse o poeta. Mesmo sem termos prole. Quando a gente acorda, comadre, vê a peste do monstro no mesmo lugar.
– Oxi!
– Bote, aí, uma lapada, Bach.
– Ó gente, me deixe!
– Enche outro copo, meu patrão! insistiu o poeta.
O amor era um criador de desinência e cachaça.
Quem não tem pai chama de patrão qualquer um,
Como um Kafka no sertão prefere outra carapaça
A viver vida na turbulência e desgosto. Setembro,
Ignore agosto e mergulhe no aroma da primavera.
Fui pássaro em torno da copa de árvores na praça.
Na juventude, amei prima desgraçadamente Vera;
Foi num breve toque que tive a primeira macheza,
Mas logo caí. Fiquei cego. Aquele momento já era.
E me ficou só a renascentista secura por cachaça – ergueu copo, concluiu com a aguardente. Exibiu Alexandrino Escansão as suas horrendas expressões no rosto e contorceu-se ao ingerir no abismo da garganta a criação de Dioniso. Reviveu a surpresa ao tocar àquela vez a prima Vera; isto lhe foi comparado à experiência do rapto de Perséfone por Hades.
– Oxente!
– Arriégua! disse Bach à reação dos protestos defronte ao seu balcão. E a reação viu o ar se encher de perdigoto, choveu variação diatópica nas gotículas de saliva do dono do bar. Na variação diatópica geográfica e regional, Bach quis afastar o protesto. Recorreu à variação diacrônica como se viajasse na língua da história:
– Ó gente, vossa mercê... vosmecê... você... cê...!
Bach recorreu à variação diastrática, porque o ambiente social lhe exigia. Usou gírias, foi aos jargões de seu ofício. Caiu na variação diafásica e usou ora a comunicação formal, ora informal. Não demorou, Bach tinha perdido a noção da região geográfica, da época, do contexto da conversa, da classe social.
– Outro copo, meu irmão! e bateu no balcão com o copo de vidro grosso. Eu fui guia de cego de feira em feira, sabe. Em Caruaru, fui amigo da linha e da agulha numa fábrica de bordar. Na casa de Ariadne, eu bordei versos e me perdi em seus labirintos. Adormeci no ônibus da meia-noite em direção ao Recife, e acordei em Santana onde envelheço na traição dos prazeres ao som das cordas desta viola. Blim! Blão! Blá! Blá! Blá! Dó, mi, sol.
Nada mais é mais feliz e duradouro do que o prazer que nunca termina.
Vovô conversava com Vovó:
– Infeliz do rato que acredita em outro. No mundo de roedores, o respeito e a compreensão foram os primeiros a serem roídos.
– Ó, deusa do prazer, disse Vovó a Vovô, deusa das deusas!
Vovô ouvia Vovó, porque costumava dizer aos vizinhos que Vovó sempre estava certa, e as suas palavras eram como o sal da terra.
– Daimon, disse Vovó, dos daimons!
Ambos, na preguiçosa, na manhã do início da primavera, tomavam banho de sol.
– Divindade, ó divindade das divindades, que é o prazer absoluto. Quando nos sentimos desconfortáveis, recorremos à divindade. Tudo faremos por ela. Só mesmo este espírito nos alimenta e nos mantêm vivos!
Vovô anuiu à Vovó.
– Força natural, seguiu Vovó, impessoal, influenciadora da vida. Ó gênio que permite a eternidade da voz. Nossa guia e nossa luz. Prazer, nada mais do que prazer. Prazerosa vida. Prazer como finalidade única de ir e vir. Soberana alegria da Dona Dopamina amancebada com Seu Tédio.
– Nossa vizinha? disse Vovô.
– A liberdade? Ora a liberdade! disse Vovó. E o que temos com a liberdade se temos o prazer?
O prazer de Vovó era Santana. Vovó ignorou a pergunta de Vovô. O prazer de Vovô era o gado, era a terra, os frutos de árvores do bem. Na terra, pois, Vovô moldava o gado, moldava a terra à vontade, como fazia o artista na roda de oleiro em seu ofício. Era o prazer quem levava Vovô a vestir-se de sol, chapéu de couro com barbicachos com o qual ia à feira, e chapéu de couro de abas curtas com o qual ia à roça; selava o Tanque de Guerra, montava-se; Vovô em gibão de couro e perneiras, alpercatas de couro de jumento, luvas e chicote; isto representava o prazer de Vovô. Montado em Ôi de Botão ou em Tanque de Guerra, cavalgava Vovô. E a tristeza de Vovô era não cavalgar atrás de desgarrada rês oculta na espinhosa vegetação da caatinga.
Os olhos de Vovó brilhavam com Vovô. Não sobrevivia sem o feromônio dela. Tudo parecia fluido, como fluido passou a ser o dia a dia na convivência do bar de Bach. Você sabe.
– Sei! disse Você.
No bar, anterior à chegada de Eufemística, foi estabelecido um pacto entre os frequentadores. O pacto, que começou com um desafio entre de brincantes, tomou proporções shakespearianas, pois Antítese amava Antônimo, que amava Hipérbole, que amava Exagero, que parecia não amar ninguém. Anáfora amava Repetição, que amava Antítese, que preferia Metonímia, com quem tinha sonhos eróticos e, enlouquecido, amava Dona Troca, e ela preferia o dono do bar. Bach dizia amar só Ironia desde menino, quando dividiu com ela o banco escolar, no grupo. Hipérbato fazia juras de amor à Inversão, que amava Personificação, que amava Graduação, que arrastava uma asa à Sequência. O padre sabia, disse o jornal, porque ouviu em configurações; mas, obediente aos sacramentos, a lei e o silêncio sacerdotal percorriam as mesmas ruas, becos. Como Metáfora amava Conotativo e, com a chegada de Eufemística, Conotativo ficou balançado por ela feito desgastada gangorra em praça pública, fez-lhe juramento Metáfora de que, se Conotativo desistisse dela, só andaria com os olhos no chão. Manteve-se o pacto, mesmo com as fissuras, porque Elipse continuou amando Omissão, que amava Pleonasmo, que preferia Redundância. Onomatopeia foi a única que não aderiu ao pacto hedonista. Polissíndeto, que aderiu junto com os outros, amava Conjunções, que era de todos por amar Mais, carregava pedras morro acima, Mas, que via correr pedras morro abaixo, Porém, que era sempre um empecilho, Contudo, um chorão, Portanto, vivia bêbado, Todavia, não saía da porta do bar, exceto Entretanto, que gritava que queria lonjura de Assíndeto. O pacto deixou de ser levado a sério quando a brincadeira foi substituída. Os frequentadores do bar de Bach começaram a dizer que Eufemística fazia parte da Associação das Aranhas; ela era uma das sacerdotisas, como Ironia. A Associação das Aranhas ganhou ares de verdadeira seita entre milhares de outras.
"Sonho de uma noite de primavera" foi o título da matéria no Diário cujo lide dizia "passada na madrugada de seresta e bebedeira entre os amigos no bar de Bach" na chamada de capa. A manchete da edição trazia a pesquisa sobre a ascensão de Omissão. O primeiro parágrafo da reportagem era sobre o sonho de uma noite de primavera. "Onde há vida está presente o desejo de se replicar por meio da procriação? Nem sempre, porque o amor costuma fantasiar-se."
Omissão crescia nas pesquisas.
O dono do bar era vítima dos sintomas de fascite plantar sempre que lhe acusavam de cheiro de óleo azedo. Alguns diziam que era por causa dos pastéis, a hipótese de outros era de que Bach nasceu em casa, puxado a fórceps, e veio ao mundo com esse odor característico, por fim, havia quem dissesse que o óleo saturado saía de seus poros e escorria feito suor. Poucos se acostumam com aquele bodum. Não foi à toa que Ironia sumiu. Como Ironia teve coragem de ficar duas horas no cinema com ele? Bach não perdoava as recusas de Ironia aos reiterados convites para ir com ele outra vez ao cinema. Eufemística começou a evitar Bach por causa das insistências em saber o que houve com Ironia.
Bach jurou vingar-se de Ironia. O argumento de Bach defendia que donos de bar fossem juízes de si mesmos; não aceitava ser julgado por qualquer um; e até estendia o direito a todos; assim, só o pedreiro julgasse o pedreiro, a dona de casa fosse julgada por uma igual. O argumento não passou de voo de galinha.
– Tô aberto a sugestões! disse Bach, bem sério. Ao fim e ao cabo...
Sintomas de fascite plantar levaram Bach ao banco; enquanto se sentava, ouviu o mundo silenciar em volta. Ficou calado. Era como se a surdez absoluta o impedisse de ouvir as vozes, as gargalhadas, as algazarras dos clientes; ele via as bocas que se mexiam a falar coisas, os gestos e os corpos que se moviam, o líquido das garrafas que preenchiam o vazio dos copos, o abridor de garrafa usado. Barulho nenhum alcançava a audição dele, que estava com cinco anos de idade – atropelado por uma bicicleta. Caiu. Rolou no chão de barro. Quebrou a clavícula. Foi levado às pressas a uma farmácia. O braço foi enfaixado; ficou na tipoia. Medo. Choro. Vozes retornaram; não no bar, na rua. Atropelado. Na farmácia, ele chegou carregado nos braços do pai. O gesso. O povo. O braço imobilizado. Era chamado no grupo escolar de Braço de Radiola; e chegou aos nove anos de idade com o apelido. Corria atrás dos colegas que gritavam "Braço de Radiola!", arremessava-lhes pedras. No quarto dos pais, encontrou uma 12 de dois canos curtos batizada de Espalha Chumbo. Examinou os canos. Vazios. Nas gavetas, procurou os cartuchos e os encontrou no criado-mudo. Encheu os bolsos; carregou a Espalha Chumbo; saiu de casa; andou na rua onde há quatro anos quebrou a clavícula; chegou à casa de quem lhe acidentou; ele estava na mesa, era meio-dia porque o sino da igreja anunciou 12 badaladas; ele apontou a Espalha Chumbo; armou, puxou os gatilhos, pouh! Voltou-lhe a audição. Ouviu a vida de volta.
Tarde da noite, havia passado a hora de fechar. Bach se dizia um cadáver de cansaço. Conversava com Antítese e Antônimo; ambos bêbados, trocavam as palavras e as pernas quando Bach disse:
– Ironia não me quer porque eu a quero. É possível?
Os bêbados Antônimo e Antítese olharam-se sem entendê-lo.
– Ironia falou que não queria ser mãe, porque sabia que eu queria ser pai. "Sabe por que as pessoas procriam?" ela disse. Como poderia saber? Ela disse que os pais são pais porque querem se replicar. “Por quê?” disse. Eu mesmo não entendi o porquê dela. “Porque é assim, Bach!” Foi o que falou, mas não me convenceu. “Os pais querem se repetir nos filhos; eles imaginam que podem ser os filhos melhores do que os pais. “Que decepção!” Ela riu em minha cara. “Que decepção!” Repetiu. “Que decepção!” Ela não parava de repetir, meus amigos.
Antônimo e Antítese abraçaram-se e foram ocultados pela rua escura.
Bach arrastou a última porta de madeira, alta e em duas folhas verdes descascadas pelo sol, meteu as mãos nos bolsos do casaco jeans à procura das chaves. A essa hora, o Sr. Plutocrático passou com as multas cheias de dinheiro e a escuridão da rua se encarregou do resto. O sino, na igreja, marcou a meia-noite com as badaladas. Os pés de Bach o levaram à rua, agora na direção oposta aos amigos Antônimo e Antítese, o Sr. Plutocrático e as multas.
Naquela noite, quando as garrafas ficaram sozinhas no bar, a garrafa na qual estava escrito Cachaça pregou liberdade às outras garrafas. As prateleiras, cheias de garrafas, acordaram na escuridão e foram ouvir o que Cachaça quis dizer com este verbete tão comum na boca dos frequentadores do bar.
– Nunca perceberam como somos ignorados na bodega? disse Garrafa. As outras, que procuravam um cantinho onde dormir porque no dia seguinte tudo recomeçaria, despertaram. Cachaça considerava-se a mais confiante entre as garrafas, e outras quiseram falar. Mais garrafas tentavam convencer a Cachaça a desistir das construções de narrativas, mas Cachaça reverbera a arrogância com demonstração de valentia, fúria e violência.
Na cama, Bach brigava com o travesseiro. A insônia o impedia de dormir, e o impediam as imagens de Ironia que escalavam as paredes de seu quarto.
A cidade cultuava a liderança de Omissão, que tinha paredes nas casas pintadas com slogan de campanha em tinta azul e emoji de mãos com o polegar erguido em sinal de aprovação à campanha. Omissão prometia aos eleitores, se fosse eleito, reescreveria a história de Santana. No diretório, Tédio e Dopamina distribuíam apólogos.
– Por que fez isso, Omissão?
– Porque o Tédio não resiste à Dopamina.
Outro dia:
– O que atrapalha a nossa escola, Omissão, disse Eufemística, é a Dona Gramática Normativa, esta arengueira que luta contra a Sra. Literatura, mulher do Sr. Plutocrático. Briga a Dona Gramática sob os aplausos da Srta. Linguística.
– E o que tem a ver com as calças!
– A máquina, Omissão, vai tomar a cátedra.
Eufemística, ouviu Omissão, fugiu de São Paulo porque teve uma filha de um empresário; a filha lhe foi tomada, e Eufemística foi ameaçada de morte. Ao tomar conhecimento, Omissão prometeu ajudá-la. Eufemística era vista na casa de Omissão.
– Me chame de senhor! era assim que Omissão tinha prazer na vida. Diga sem demora. Como se tivesse com sede e eu lhe trouxesse água. Diga com seu sotaque do Sul. Como se tivesse fome e eu lhe trouxesse o de comer. Me chame de senhor, senhora. Desculpe. Senhorita.
– Senhor?
– Me chame, com a sua chama, como se chamasse xamã.
– O que, senhor?
– De senhor. Me chame.
– Senhor.
– Me chame de novo.
– Senhor!
– Mais um bocadinho.
– Senhor...
– Assim, Eufemística, o seu senhor chora.
– Senhor...!
A conversa tomou corpo. Omissão pediu à Eufemística que lhe chamasse de Texto.
– Texto, senhor?
– Texto, senhora.
– Senhorita, por favor.
– Senhorita. Irei lhe chamar de Linguagem.
– Linguagem, senhor?
– Linguagem, Estilística.
Vamos passear, ele propôs. Ela desviou-lhe o olhar, por timidez, e fixou a porta da rua. Não faça assim, Linguagem. Olhe essa praça, ele insistiu, esses bancos, essas árvores, esse povo; e tocou na mão dela com elogios. Como foi esse zunzunzum de sua fuga de São Paulo? quis saber, como se não soubesse. Abra os braços, abra-se para mim, diga-me o que houve, brevemente, e não me esconda os porquês. Teve mesmo uma filha de um empresário paulista? esperou a resposta, que não veio. Era empresário paulista ou paulistano? insistia. E como alguém com esses olhos, com essa boca, com esse sorriso, com essas mãos, com esse rosto, com essa inteligência, com esse corpo, com essa desenvoltura, com essa capacidade, esse jeito... Foi ameaçada de morte, Eufemística? Ó, senhor! Me chame de novo de senhor.
– Senhor!
– Mais um bocadinho.
– Senhor...
– Se eu ganhar as eleições...
– Por óbvio que o senhor irá ganhar.
– Você acha, Linguagem?
Tudo é texto. Caminhava Linguagem. No bar, as mesas, copos, garrafas e conversas sobre Omissão e Eufemística. A função comunicativa do texto em toda a parte se acha. Texto olhava Linguagem, às vezes de maneira verbal, às vezes não verbal. Logo dizia uma simples palavra, em seguida lhe falava uma obra completa. O emissor Omissão se dizia o evento comunicativo, Eufemística receptora de sorrisos. A interação com ela o fazia falar e tocar-lhe nos ombros, nos braços, como se fosse demonstrar coerência e unidade de sentido, mesmo com o hábito de mensagens incompreensíveis, uma coleção de frases soltas, incompletas. Pegar no braço dela, enquanto falava, ou mesmo no ombro, o que era frequente, não gerava contexto sociocomunicativo.
Texto expressava-se por bilhetes e também variava por extensão ao falar como um livro de verbetes. Texto dormiu com Linguagem? apareceu a pergunta no bar.
As mesas cheias. Bach vendia cerveja e sarapatel, cachaça e conhaque. As gargalhadas tomaram proporções que nem na época de Exagero se ouviram tantas entre gestos e outros códigos. Símbolos e padrões eram multiplicados. Linguagem comunicava-se repleta de emoções, Texto traçava regras, subia em Santana, abria ruas, fechava-as, fazia comércio, criava outros empregos, novas escolas, hospitais, pavimentava com asfalto onde não houvesse; empolgava-se, não apenas de maneira oral, agia por gestos, pela escrita no muro das casas de maneira corporal e visual. Símbolos de Omissão se espalharam por imagens.
Antítese morava com Antônimo. Hipérbole, que era amigo de Exagero, foi escrever odes à memória do falecido. Anáfora vivia com Repetição. Metonímia era unha e carne com Dona Troca. Hipérbato tinha um comportamento estranho com Inversão, e Gradação não era diferente com Sequência, e Conotativo não largava Metáfora.
Elipse financiava a campanha de Omissão. Desenvolveu repugnância à amizade dele com Eufemística. Muitas vezes falou que a amizade estreita ia alargar. Os frequentadores do bar não desconfiaram de que a ameaça de Elipse era movida pelo ciúme, que ficou no lugar da cicuta.
Redundância e Pleonasmo dormiam juntos – a cidade sabia. E Assíndeto não queria mais saber de Conjunções. Som e Onomatopeia não se ouviam falar.
Eufemística suaviza as agressões de Elipse motivadas por Omissão:
– A culpa não é minha, Elipse.
– E de quem é?
– Ele que me pede pra chamá-lo de senhor.
– E?
– Eu o chamo.
– Chamá-lo com a sua chama de xamã?
– N-não.
– Não me venha dizer que não sabe que é uma das sacerdotisas.
– Quê!
Elipse não se conformava em perder Omissão. Eufemística, várias vezes, tentou convencê-la de que a sua estada em Santana não era estadia. Veio fazer a sua pesquisa de conclusão de curso; logo voltaria a São Paulo. Elipse duvidava de Eufemística.
Ironia sumiu. Foi aquela vez ao cinema com Bach e, após a sessão, fez o contrário: ao invés de outras vezes no escurinho, nunca mais foi vista com Bach. Personificação meteu-se com o Sr. Plutocrático; tentava interromper as suas idas e vindas com as burras cheias; o propósito de Personificação era o de humanizar as burras do Sr. Plutocrático. Ele queria que elas falassem, como falou a jumenta de Balaão em Números, falou a serpente em Gênesis e a águia em Apocalipse.
Eufemística era obstinada. E veio de São Paulo a Santana com a missão de comprovar a hipótese de que a cidade foi o epicentro do lampionismo. Se não houvesse ocorrido o que aconteceu com o pai de Lampião e um cabra de volante em Santana, Lampião teria sido mais um Cabeleira, Antônio Silvino, Inhô Pereira.
Omissão começou a sair com Eufemística em plena luz e guardar a língua na boca dela. Antítese desaprovava o bate-papo de Antônimo com Eufemística, pois ela poderia atraí-lo e ele cairia na teia dela. E Hipérbole acusava a morte de Exagero ter sido motivada por Eufemística, e demonstrava isso em seus versos; e Alexandrino Escansão ria do tipo de verso nas estrofes do colega. Anáfora era contra a aproximação e as noites de Repetição com Eufemística. Sequência via Gradação muito perto de Eufemística e lhe disse que foi o fogo o responsável pelo sofrimento de Prometeu; Sequência prometia acabar com Eufemística se Gradação continuasse com esse chamego. Conotativo, segundo se comentava no bar, prometeu viajar com Eufemística quando ela voltasse a São Paulo; ao saber disso, Metáfora jurou impedi-lo; o padre aconselhou, uma vez ou duas, e, mesmo assim, Metáfora disse que preferia perder a alma a perder Conotativo; o padre a aconselhou outras vezes, inutilmente, por ter a impressão de que os mortos de fato teimam em não morrer mesmo quando estão mortos. Elipse, corria no bar, procurava alguém da pistolagem que evitasse os encontros de Omissão com Eufemística. Pleonasmo descobriu que Redundância tinha uma queda por Eufemística. Conjunções puxou faca, brigou, enfrentou Assíndeto em casa e na rua por ele dar trelas à Eufemística.
Ironia advertiu à Eufemística:
– Não vá com sede ao pote.
Eufemística não era de se importar com distâncias.
E Polissíndeto, que vivia a sonhar com boticas, envelheceu com uma rede de farmácias graças ao amigo Conjunções. Polissíndeto com Conjunções eram o oposto de Assíndeto, este preferia viver sem a companhia de Conjunções.
Metonímia disse a Dona Troca que não se metesse entre as querelas das figuras no bar e Eufemística. Dona Troca preferiu uma partida de sinuca e cerveja com Onomatopeia.
Assíndeto viu que Personificação jogava cartas, Hipérbato dominó. No bar cheio de moscas, pastel frito, garrafas vazias nas mesas, copos pela metade, viu Polissíndeto que Antítese e Antônimo brigavam, e brigavam Anáfora e Repetição.