SANTANA: EPICENTRO DO CANGAÇO LAMPIÔNICO
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 28/09/2025 - 23h 35min0
Acorda Bach o tropel de cangaceiros que fugiam da volante. A corda presa ao galho da Craibeira. E falou, durante o sonho que se sonha instantes antes do despertar, a Craibeira com o Pau d’Arco próximo ao Ipê-amarelo. Acorda ou não com a justiça a ser feita com o que foi feito à Eufemística?
A vida de Bach não era tão-só mexer-se, abrir os olhos, na cama, lembrar-se de acordar, lutar de maneira feroz contra o sono matinal como guerreou contra a insônia à noite anterior, reviver detalhes do que houve com Eufemística como fazia cada noite antes de dormir. Pobre de mim! disse em voz alta. Acordado, lamentava de novo a morte trágica de Eufemística, e temia, enquanto caminhava da cama ao banheiro, a longa espada trazida pela mulher da venda e o peso da balança da Justiça. Pobre de mim! repetiu. Saiu do quarto ao banheiro e dele à cozinha, e dela à sala de estar, retornou ao quarto, deste à porta da rua, arrastou da garganta a secreção e forçou o arremesso que alcançou o meio da rua. Voltou à sala de estar, ligou a TV, mudou o canal, viu as imagens coloridas do noticiário, abandonou a sala pelo quarto onde ligou o rádio e, sentado à cama, procurou a estação. Pobre de mim! em voz baixa. Reclamou de Ironia que, depois da sessão de cinema, nunca mais quis vê-lo. Pobre do filho que deixei lá em São Paulo? E parece que ele parou de encher o saco. Enquanto vida tiver não pisarei naquela terra. Imagina se eu ia assumir a paternidade daquela peste! Poderia ter feito a vida em São Paulo como fez o Maninho; se tivesse seguido a voz de meu irmão, não teria feito o que fiz. Ironia merecia ter o fim que teve a sua amiga Eufemística. Por que Ironia fez o que fez? Ela não merecia nem que eu lhe dirigisse à palavra. Se eu a encontrar na igreja com o véu azul sobre o cabelo, que esconde o rosto, faço de conta quê... Ah! Saiu da cama, saiu do quarto, alcançou o amplo corredor ladeado por janelas e sol que levava à sala de estar onde a TV falava de sessões e debates no Congresso, mudança no clima, desastre aéreo, imobilidade urbana e piscinas naturais em Maceió. Foi à cozinha; encontrou no trajeto o celular sobre a mesa; olha-o com secura permanente – parecia vivo, pois acendeu e apagou uma vez, duas, três vezes – e Bach pôs a mão nele, a luz se intensificou. Bach ignorou msg por lembrá-lo de telefone sem fio, pulava zap feito amarelinha, abria e fechava e-mail, vídeos no YouTube, riu de publicações no Instagram e pulou o Face. Regressou ao quarto. Ajoelhou-se diante de Santana e fechou os olhos e abriu a boca com rogos de que não lhe condenasse às profundezas. Saiu. Voltou à TV. Desistiu dela. Por que abandonei aquela criança no bairro de Santana, em São Paulo? Foi à cozinha. E as caminhadas na Zona Norte resultaram naquela criança. Voltou aos pés de Santana. Pobre de mim! resmungou. Arrastou os pés até chegar à mesa e alimentar-se dos restos deixados na noite passada. Abandonou a mesa. Abriu a torneira na pia e saiu do cano uma aranha em lugar de água, magra e quase transparente com longas, ágeis pernas que corriam no azulejo. Voltou à torneira e viu outra aranha sair de onde saiu a primeira. Mais uma vez, disse, Santana sem água! Não, não era só. Isso era outra coisa. E quis descobrir. Tentou matá-las, elas fugiram. Pequenas e misteriosas. Quem fez este inseto miúdo ocupar a boca da torneira? As outras também foram ocupadas. Que faziam as invasoras sob o meu teto? Esperasse um pouco. Ah, entendi! Só podia ser coisa dessa maldita Associação das Aranhas. Coincidência miserável ter lido, ontem antes de dormir, a reportagem sobre ela; vi as imagens das sacerdotisas, elas estavam espalhadas nos seis continentes. Não foi São Paulo quem a criou, disse a matéria, foi um pesquisador alagoano ao descobrir um cinturão de serras com abissais cavernas onde, nas paredes de pedra fluorescentes, corriam fios d’água iguais a teias de aranha. Abriu e fechou a porta de casa; enfiou as chaves no bolso; em cada bolso um molho e elas tilintavam durante o caminho com as moedas.
– Vivemos num tempo de absurdo! riu da piada. Santana como epicentro do cangaço lampiônico? Como se inventam coisas! disse, e começou a reunir as peças. Bach saiu de casa em direção ao bar com as partes desse labirinto sobre o sumiço de Ironia, primeiro, e depois a morte de Eufemística e, por fim, a matéria no Diário de Santana sobre a Associação das Aranhas. E como aquelas aranhas entraram pelo cano?
No percurso, entre a casa e o bar, Bach falou só. E Santana passava dias sem água; nunca foi novidade. Ficava o bar com água suja numa bacia vermelha de plástico onde mergulhavam pratos, xícaras de cafezinho, talheres, copos de vidro grosso e os de cerveja o dia inteiro; a mesma água o dia inteiro, a mesma espuma de sabão o dia inteiro. Esperava o caminhão-pipa e comprava dois barris d’água usados no banheiro, na pia por uma semana; também não era novidade. Novidade eram as aranhas sem-teto ocupar a torneira da pia. Fiquei intrigado com a coincidência, no Diário, e com as aranhinhas que me recepcionaram pela manhã.
O compadre Polissíndeto vai longe! disse, como se tivesse alguém no bar. Ligou a rádio, procurou uma estação com Jackson do Pandeiro ou Luís Gonzaga. O compadre é uma figura de construção e Santana respeitava isso no compadre. Li outros originais da oralidade literária do compadre. Ler Polissíndeto era como se ele conversasse. Não que o compadre se preocupasse com alguma estrutura gramatical, porque literatura era... Depois, Santana já sabia que a leitura do que escrevia o compadre lembrava o Panema com água. Um correr o ritmo natural e fluido do compadre com repetições e retomadas. Hipérbole não conseguia uma pontuação expressiva na poesia como fazia Polissíndeto. E toda a leitura não se afastava da sensação de intimidade, aproximava o leitor do texto igual os poços do Panema que atraíam tantos banhistas, tantos pescadores, tantas mortes por afogamento e tantas lavadeiras do passado retornam dos mortos. Aprendi a ler Polissíndeto quando presenciei Ironia atraída pelo fluxo de pensamento, que ultrapassava o bar, rua, bairro, cidade. Digressão? Não se encontrava no texto de Polissíndeto, talvez nos versos de Hipérbole. Quando quis saber de Ironia por quê. A resposta foi porque Polissíndeto usava frases curtas. Só isso, Ironia? E a linguagem poética, disse. E toda a escritura de Polissíndeto assertiva, diferente dos versos de Hipérbole! disse Ironia. Bach ainda sozinho no espaço das mesas ladeadas por cadeiras e tamboretes. Atrás do bar, no espaço anexo, há mais de dez mesas de sinuca. Era cedo para os clientes. Mais tarde, bolas correriam nas mesas, garrafas e copos de cerveja suariam nas bordas, tacos com ponta melada de giz acertaram, elas baterem umas nas outras, poucos chegariam à caçapa. O texto de Polissíndeto, disse Ironia, trazia cadência próxima da fala com frases simples, diálogos implícitos, descrições do dia a dia. Como Ironia sabia isso? Polissíndeto ambientava no cotidiano da gente. Ironia era uma menina danadinha! Aí, que eu percebi. Acho que isso provocou esta atração que sinto por ela.
– Bach, em seu bar, a poesia era Hipérbole, disse Contudo, e a prosa de Polissíndeto dominava com a sua escrita poética de elaborada construção.
– Ironia era uma menina danadinha!
Atrás do balcão, Bach esfregava o trapo na madeira e nas caixas de vidro sobre o balcão onde repousavam os pastéis de ontem, levava o trapo às mesas. Não me arrependi em ter reunido o Narrador, Você, até mesmo o Sr. Plutocrático, Antítese, Antônimo, Hipérbole, mesmo o bêbado Exagero, Anáfora, Repetição, o padre, Metáfora, Elipse, Omissão, que ainda não era candidato, Personificação, Antítese, Polissíndeto, Conjunções, Mais, Mas, Porém, Contudo, Entretanto e Todavia, Hipérbato, Inversão, Gradação, Metonímia, Dona Troca, Onomatopeia e Assíndeto.
– Santana, senhoras e senhores, não pode aceitar esta loucura em figurar como epicentro do cangaço lampiônico!
– Nossa cidade não merece isso! disse o padre.
– Quem te convidou, padre! disse Personificação. Ele não pode opinar.
– Por quê? perguntei.
– Sequer nasceu em Santana!
– E o que isso tem a ver, Metonímia?
– O assunto diz respeito à Santana. Onde nasceu, padre?
– Em Olho d’Água dos Lírios.
– Não falei!
– Não troque as coisas, Metonímia.
– Só santanenses.
– Meus irmãos...
– Sem parentesco. O senhor é de Olho d’Água dos Lírios, nós de Santana.
– Vamos retomar à pauta.
– Gradação também não nasceu aqui!
– Quem, eu? Prove. Se for assim, quem também não nasceu aqui foi Mais.
– Como sabia? Fui criado aqui.
– Mas não nasceu.
– Não nasci, interferiu Mas, mas nasceram os avós e os pais.
– Que ridículo!
– Gente, vamos retomar o tema! sugeriu Omissão.
– Nisso há quanto tempo?
– Ninguém pediu a sua interferência, Elipse.
– Deixe Hipérbole falar.
– Vou votar.
– Isso é uma ameaça!
– Se Anáfora votar, Exagero não vota.
– Santana não vai aceitar essa pecha de epicentro do cangaço.
– Imagina o que pode acontecer à cidade!
– Vamos à História! propôs Repetição. Esse chefe de cangaceiros liderou 16 anos motivado por vingança com saques, assassinatos e...
– Chega, Repetição, chega!
– Encerro o assunto, disse Antítese, pois a reunião perdeu o objeto.
Não foi a última reunião com Todavia, Onomatopeia, Narrador, Antônimo, Hipérbole, Você, Sr. Plutocrático, Personificação, Antítese, Mais, Mas, Porém, Contudo, Entretanto, Dona Troca, Antítese, Polissíndeto, Exagero, Anáfora, Inversão, Gradação, que não se desgrudava de tantos pensamentos, Repetição, Conjunções, o padre, Hipérbato, Metáfora, Elipse, Omissão, Metonímia e Assíndeto. Eufemística foi marcada a ferro e fogo. O seu destino foi selado, disse Omissão, a receber uma bela pá de cal o objetivo de considerar Santana epicentro do cangaço lampiônico.
Após uma sequência de secretas reuniões, a assembleia, no bar de Bach, definiu a quantidade da cal sobre o propósito de Eufemística. O imaginário dela, foi a prosa de Polissíndeto, autor, com a anuência de Hipérbole, poeta, funciona como sistema complexo, ativo e, todos sabemos, em transformação, que vai da fantasia à realidade com a velocidade da luz. Eufemística não é apenas beleza em corpo e juventude, disse Omissão, é proprietária de um campo de criativa perfeição, uma deusa do filme... do filme... Omissão não conseguiu saber se era filme, série, livro ou HQ. Mas concluiu o raciocínio de Omissão ao dizer que ela demonstrou, desde as primeiras páginas, figura de prodigiosa imaginação que falava tornar Santana epicentro do cangaço lampiônico.
Exagero subiu em um banco e defendeu a permanência da pesquisadora Eufemística na cidade. Efusivamente vaiado, pediu calma; as vaias continuaram, surgiu o desinteresse dos participantes em seguirem no salão de sinucas, no bar de Bach. Exagero não parou em exigir clemência em defesa de Eufemística, que estava com a vida ameaçada. Começou a esvaziar-se o salão. Exagero pediu e insistiu, antes que Bach apagasse as luzes, que as figuras não a julgassem, pois sabia que Eufemística seria condenada. Vaias. Subiu à mesa; Bach implorou que Exagero descesse. E esta assembleia não resistiu quinze minutos. Ficou sozinho e falou sobre uma história que o seu pai contava sobre um irmão do padre Velho, poeta de cordel cego que trabalhava como alfaiate, e não era aceito pela cidade. O nome dele era Alexandrino Escansão. E, mais tarde, surgiu na cidade, como se trazido pelo vento, um sujeito com versos e predicado, que recebeu a alcunha de Alexandrino Escansão sem ser o original. A cidade tinha essas coisas de fazer e desfazer, ignorar, perseguir, matar. O povo fez isso com o filho de Deus. Depois desta assembleia, não lhe foi mais permitido participar dos encontros das figuras que deliberaram o que fazer com Eufemística e com o seu absurdo de nomear Santana epicentro do cangaço lampiônico. E o grupo agiu de forma organizada e lógica. Foram redesenhados os conceitos de causalidade, espaço, tempo.
– Ó pessoal, ninguém pode permitir que o imaginário dela, disse Antítese, vá tão longe.
– Ela pode imaginar coisas complexas! disse o Sr. Plutocrático; e o padre pôs a mão no queixo na tentativa em adivinhar o que fossem coisas complexas sugeridas pelo Sr. Plutocrático, que havia deixado as burras amarradas na frente do bar.
– Eu testemunhei, adiantou-se Dona Troca, que essa menina Eufemística costuma misturar elementos fictícios com reais.
– Eu também! disse Repetição. E, com tamanha facilidade, cria histórias, cenários, universos paralelos.
Conjunções, calada, observava.
– Mentira! atalhou Omissão.
– Verdade.
– Desde o último, que foi expulso, a verdade perdeu o posto à mentira.
– Eu vi Eufemística fingir ser astronauta.
– Eu a vi fingir ser alienígena.
– Quando?
– Logo quando chegou à cidade. Eufemística garantiu ser São Paulo outro planeta, distante do sistema solar e com leis próprias.
– Oxi!
– Foi. A conversa dela foi que São Paulo possuía uma cultura própria.
– Deixamos Eufemística ir muito longe! reclamou Polissíndeto.
– Como foi que ela apareceu no bar?
– Não foi com Ironia!
As figuras entreolharam-se. Faltou luz em Santana. Caiu um temporal. Era o último sábado de setembro. As figuras não se deram conta de que aquela noite foi breve e as deliberações sobre o destino de Eufemística ainda estavam sendo riscadas à ponta da faca.
– Eu não estou interessado em nenhuma ideologia.
– Não se trata disso, Porém.
– Perdi mãe, morreu pai, Maria se foi. Não é... – Porém não concluiu. Bach antecipou-se:
– Associação das Aranhas!
– Não vou perseguir ninguém.
– Não se trata disso, disse Bach, trata-se de...
– Uma organização com ramificações em todo o mundo, disse Mas.
– Li, ontem, no Diário! atalhou Todavia.
– Se procurarem por Eufemística, aqui em Santana, diremos que se foi de volta a São Paulo, de onde nunca deveria ter viajado ao sertão.
– Ninguém pretende matar Eufemística, disse Conjunções, pretende?
– Só se for o caso.
– Só se for o caso, Bach!
– Fale baixo! advertiu com a ameaça de pegar em armas. Nossa Santana não carece de saber.
– É só uma jovem que quer concluir a faculdade! disse Contudo. Não se cansa da violência?
Essas interferências de Conjunções aborreceram Bach. Ele havia falado, em uma das assembleias, que recebeu em casa uma mensagem da Associação das Aranhas e ficou apavorado com a ousadia dessa organização; ela ordenou que aranhas minúsculas invadissem a tubulação hidráulica e isso lhe perturbou. Não puderam participar as conjunções aditivas, adversativas principalmente, as alternativas que se mantivessem longe, as explicativas e as conclusivas fossem estabelecer relação em outras orações.
– Ela é competitiva e bebe! disse Bach. Bebe muito e não fica bêbada. Eu não confio em gente assim. Sou supersticioso, né. Você sabe.
– Não sei nada! disse Você.
– Eufemística é uma mulher muito sedutora.
– Você acha isso.
– Não acho nada! refutou Você.
– Eufemística seduziu Exagero.
– Foi?
– Foi o primeiro que caiu na lábia dela.
– Pobrezinha! atenuou Omissão. Eufemística quer apenas concluir o TCC.
– Pois que vá conclui-lo no raio que a parta! interferiu Pleonasmo.
– Vamos contratar um pistoleiro?
– Não exagera, Onomatopeia!
– Para expulsá-la de Santana.
– Vamos apenas dar um susto.
– Deixe para lá!
– Não exagere na mão, Sequência.
– Na mão, Sequência já é acostumado.
– Evite o Delegado Severo Açoite, Gradação.
– A pobrezinha me procurou, esses dias, porque queria entrevistar velhos soldados das volantes que guerrearam contra os cangaceiros; saber deles sobre a morte do pai de Lampião.
– Não falei, disse Bach, que ela é ladina!
– Gente de São Paulo é assim.
– Corri de São Paulo, porque tive medo.
– Deixe a menina, Bach.
– Não deixo, Omissão. Fui ameaçado em minha própria casa. Ela mandou pequenas aranhas transparentes me atacarem. Eu poderia ter sido cercado por elas à noite enquanto dormia. Já pensou, Omissão, se alguma coisa, um barulho qualquer me acordasse no meio da noite e eu me visse cercado por teias de aranha dos pés à cabeça, e...
– Quer isso, meu irmão!
– Li, no Diário de Santana, que a Associação das Aranhas teleguia esses aracnídeos, eles invadem à privacidade dos adversários, amordaçam a boca, os olhos e os ouvidos, matam a gente de sufoco.
– Eu queria ter uma noite com Eufemística.
– Isso é a tua cara, Omissão!
– Um cara assim, respondeu-lhe Omissão, solitário e esquisito... E ouvi a conversa que teve com o sujeito sem predicado motorista do caminhão-pipa. Era ele, Bach, o avô da filha daquela mulher do Recife?
– Era.
– Abandonou a filha, abandonou o filho... Como se sente, Bach? É mesmo solitário e esquisito!
– Assunto não é esse, Omissão. Existem leis, sabia? Os filhos podem ser presos se abandonarem os pais.
– Homem medroso esse Bach!
– Medroso de quê?
– Aranha.
– Oxi, peste!
– E trate Dona Troca com respeito, ouviu.
– Deixe Dona Troca fora disso, Omissão.
– Deixo se deixar Eufemística fora disso.
– Disse e não desdisse, a Associação das Aranhas é ameaça, não só ao aquecimento global como às famílias de Santana.
– E o que tem a ver uma...
– Não percebeu o calor dos últimos dias?
– Calor! fez uma expressão que reprovava Bach. Se filiou a essas ideias, foi. Eu quero alguém com o poder de Bach em minha campanha.
O padre participou de algumas assembleias por insistência de Omissão e o compromisso que tinha com o parente. Omissão prometeu elevá-lo ao bispado e, mais cedo do que imaginasse, chegaria a Arcebispo, talvez Cardeal. Soube-se, naquela noite, que os adversários de Omissão foram silenciados a pedido dele ao Delegado Severo Açoite, que tinha pretensões. E Alexandrino Escansão compôs um livro de cordel sobre os olhos de Eufemística, cujo poder fazia pedra qualquer ser vivo.
– Como fez versos assim, poeta? disse o repórter do Diário de Santana.
– Com a palavra.
– O Diário financiou o livro.
– Leu?
– Não.
– E como fala tanto?
– Ouvi dizer haver versos que iniciam o fio da vida no momento em que os pés de Eufemística tocam Santana. Outros versos, poeta, medem o fio e lhe determina a cadência com períodos bons e ruins, oração composta e simples, e o poeta corta o fio, como faz na costura, com a tesoura da rima, porque a poesia é responsável pelo fim da vida.
Naquele momento, a assembleia foi tomada pelo grande silêncio. Nunca mais estiveram na assembleia o Sr. Plutocrático nem o padre. Sábado sempre foi um dia sagrado ao Sr. Plutocrático, que corria atrás das burras cheias. Na sexta-feira à noite, o padre não saia da casa paroquial. Antítese e Antônimo pediram uma dose e Bach lhes trouxe. Hipérbole rabiscava um papel, guiado pelo toco de vela deixado por Bach em sua mesa, em busca de um verso ou dois que descrevessem o sentimento da cidade sobre Eufemística. Exagero nunca mais lhe foi permitido participar de uma daquelas assembleias que decidiam o futuro de Eufemística. Anáfora cochilava no ombro de Repetição. Antítese planejava comprar carne no mercado, quando a chuva diminuísse. Metonímia trocava conversa com a Dona Troca. O dono do bar cobrava a promessa de Hipérbato, que disse sem coragem de fazer o que prometeu à vida de Eufemística. Chegava o Dia de Anunciação à Maria pelo anjo Gabriel. Inversão cochilava. E Gradação, atrás das mesa, esperava que Personificação tomasse uma atitude. Metáfora bebia bate-papo sobre o fim de setembro com Conotativo. Elipse surpresa porque a folhinha já indicava ser quase o Dia de São Miguel, Gabriel e São Rafael, 29 de setembro, Dia Mundial da Conscientização sobre Perdas e Desperdício Alimentar e o Dia Mundial dos Rios. Pleonasmo repetia:
– Chega o Natal!
Insistentia o tamborilar da chuva no telhado do bar. Já moribundos, os pingos falavam um com ao outro:
– Oi!
– Oi!
Sem vida, o murmúrio dos pingos cessou.