Qual educação salva?
Expressão “só a educação salva” mascara desigualdades estruturais, culpabiliza o indivíduo e esvazia o papel transformador da escola pública e do projeto político coletivo.
Publicado 06/10/2025 12:52

Poucas frases parecem tão consensuais quanto “só a educação salva”. Em discursos de gestores, campanhas publicitárias e até em conversas familiares, a afirmação soa bonita, até reconfortante. No entanto, por trás de sua aparência, esconde-se uma armadilha ideológica. O problema não é reconhecer que a educação é um bem essencial à vida humana a questão é tratá-la de forma abstrata, como se fosse um remédio neutro e universal capaz de curar todas as mazelas da sociedade.
Quando dizemos que “só a educação salva”, acabamos por transformar questões estruturais em problemas morais ou de gestão. Parece bastar construir escolas, capacitar professores, oferecer aulas de qualidade e pronto, a pobreza, a fome, a violência e a desigualdade desapareceriam. Essa visão retira a atenção das estruturas econômicas e políticas que sustentam a exploração capitalista, como se o destino de cada pessoa dependesse apenas do seu esforço em estudar, e não das condições concretas de vida e de trabalho a que está submetida.
Grande parte de quem repete o slogan tem em mente outras frases de efeito; “estude para ser alguém na vida”, “a educação é o passaporte para um futuro melhor”. Essa narrativa é muito poderosa porque dialoga com o desejo legítimo das famílias trabalhadoras de ver os filhos em melhores condições. Quantas mães e pais dizem: “quero dar a meu filho a educação que não tive”, acreditando que o diploma abrirá as portas da mobilidade social? Esse imaginário, no entanto, é cruel em dois aspectos, reduz a educação a um instrumento pragmático, algo que serve para “aprender um ofício” e conquistar um emprego, esvaziando sua função humanizadora de garantir a apropriação crítica do conhecimento produzido historicamente pela humanidade.
Promete um futuro que a sociedade capitalista não pode cumprir, marcada por desemprego estrutural e precarização, a escolarização não garante inserção digna no mercado de trabalho. Basta olhar à nossa volta, quantos jovens e adultos com diploma universitário dirigindo carros de aplicativo por 12 horas ou mais por dia? Quantos entregadores de iFood, submetidos a jornadas extenuantes e sem direitos? Essa é a face mais cruel da promessa quebrada: a formação que deveria garantir ascensão social hoje serve, muitas vezes, para alimentar o subemprego e a frustração. O resultado é uma geração formada que encontra portas fechadas e experimenta adoecimento e sentimento de fracasso, como se fosse um problema individual e não uma consequência do sistema.
Assim, a educação passa a ser moeda de esperança individual enquanto a desigualdade estrutural segue intocada. O slogan “só a educação salva” revela, nesse sentido, sua função ideológica: culpabiliza o indivíduo e inocenta a ordem social.
Outra consequência desse discurso é a tendência de fazer da escola o epicentro de todas as soluções sociais. A lógica é simples, se a educação salva, então basta injetar na escola todos os serviços possíveis, psicólogos para atender os adoecimentos mentais, dentistas e médicos para suprir a falta de atendimento de saúde, distribuição de cestas básicas e leite para combater a fome. Essas ações são importantes e, numa sociedade desigual, políticas de permanência escolar são indispensáveis. Mas não podem ser confundidas com a função precípua da escola. Quando a instituição escolar passa a carregar sozinha a tarefa de “salvar” os problemas sociais, ela deixa de ensinar, não consegue cumprir sua missão fundamental de garantir a todos o acesso ao conhecimento científico, artístico e filosófico. Essa sobrecarga é funcional ao Estado mínimo neoliberal, transfere para a escola responsabilidades que deveriam ser compartilhadas por políticas de saúde, de assistência social, de habitação, enquanto se naturaliza a precarização da função pedagógica.
A luta central em torno da educação pública hoje não é apenas por vagas ou infraestrutura, mas pela disputa do próprio sentido da escola. E essa disputa passa diretamente pelo currículo, que muitas vezes é deixado à margem do debate político, inclusive pelos sindicatos e pelos movimentos estudantis. O que se ensina, como se ensina e para quê se ensina não são decisões neutras, revelam o projeto de sociedade que orienta a formação das novas gerações. Também é preciso olhar para a formação de professores e os cursos de licenciatura, que têm sido alvo de reformas orientadas pelo mercado e cada vez mais distantes de uma sólida base científica e filosófica. O currículo da educação básica e a estrutura da formação docente são peças de uma mesma engrenagem que decide se a escola servirá à adaptação dos jovens à ordem vigente ou se lhes oferecerá instrumentos para compreender e transformar a realidade.
Portanto, disputar o sentido da escola é disputar o conteúdo do ensino, a direção do trabalho pedagógico, a formação do professor, o tipo de conhecimento que será considerado legítimo. Não há neutralidade no currículo: ele expressa a correlação de forças entre projetos de sociedade em conflito.
A educação burguesa, hegemônica em nosso tempo, é aquela que naturaliza as desigualdades e organiza o ensino em torno da disciplina, da meritocracia e da adaptação à sociedade capitalista. Não “salva” ninguém, ao contrário, perpetua a exclusão e faz com que a frustração seja vista como culpa individual. A educação emancipatória, defendida pela pedagogia histórico-crítica e por tantos educadores comprometidos com a classe trabalhadora, entende que aprender é apropriar-se criticamente do conhecimento produzido pela humanidade, condição para compreender as estruturas sociais e poder transformá-las. É uma educação que não reduz a criança a um futuro trabalhador adaptável, mas a reconhece como sujeito histórico que tem direito a usufruir e ampliar a cultura humana. Essa educação não nasce nem prospera num vácuo, depende de um projeto de sociedade que supere a lógica do lucro e do mercado.
É por isso que defender a escola pública é inseparável de lutar por um Estado que garanta direitos e por uma nova ordem social, mais justa, solidária e socialista. A frase “só a educação salva” não passa de um mito paralisante. Não é a educação em abstrato que salva, e sim um determinado projeto educativo, que se constrói na contramão do capitalismo e em unidade com as lutas sociais mais amplas.
A escola pública pode e deve ser campo de resistência e de emancipação, mas só cumprirá esse papel se for capaz de priorizar o ensino, oferecer às crianças da classe trabalhadora o acesso aos saberes científicos, artísticos e filosóficos, e se articular a um movimento político que enfrente as causas estruturais da desigualdade.
A pergunta que precisa ser feita, portanto, é: qual educação queremos e para qual sociedade? Responder a isso é abrir caminho para uma luta que ultrapassa slogans e exige disputar, todos os dias, o destino da escola pública, do currículo, da formação docente e, em última instância, do próprio projeto de país.
Por fim, é preciso dizer claramente, não devemos adotar esses slogans palatáveis que parecem agradar à maioria, mas que despolitizam a luta. Frases como “só a educação salva”, “a educação transforma o mundo”, “ninguém educa ninguém” podem soar bonitas em peças publicitárias da classe hegemônica, mas fazem parte do vocabulário de quem nega a totalidade social e a luta de classes, reduzindo a questão da educação a um problema ético ou moral, como se o capitalismo tivesse ética ou moral.
Nós temos lado. E esse lado é o lado da classe trabalhadora e, em perspectiva, da emancipação da sociedade. Nossa tarefa é disputar o sentido da escola, do currículo, da formação docente e do direito ao conhecimento. É preciso dizer, sem ilusões, nenhum slogan salva; o que salva é a organização política, a consciência crítica e a luta coletiva por uma nova sociedade.