Agradar aos outros. Quanta ilusão!
– Sabe o que é que eu acho?
– Ultimamente, disse Eufemística a Bach, que passava o pano no balcão e arrumava o chapéu com barbicachos, parece comum pessoas acharem isso e aquilo sobre aquilo e isso.
– É sério, Eufemística.
– Então fale, Bach.
Esse seu professor de Antropologia, o tal pernambucano de São Paulo, é o mesmo que andou por essas bandas? Parece ser. É claro que é ele. É o certo. Não dever ser outro. Foi ele quem criou a Associação das Aranhas. Li sobre isso quando andei por lá. Ele foi acusado de usar as alunas mais jovens e transformá-las em sacerdotisas da tal associação.
– Cruzes! fez caretas e, incrédula, encolheu os ombros, fez pouco caso da narrativa de Bach, arqueou as sobrancelhas, abriu os braços. Como pode imaginar isso, Bach?
Não importa a época, ele disse, o mundo continua a abrigar tribos e não povos civilizados. Eufemística, em cada canto do mundo, o que mais se encontra é gente inculta, o que mais se encontra é a educação em frangalhos, a cabeça do povo liderada por bagaço de cana. Eufemística gostou da expressão de Bach.
– Parabéns, Bach! Disse, e ele agradeceu o vocativo dela.
– Aqui tudo é doce, Eufemística. Eu mesmo, Eufemística, sou filho de uma cocadeira. Mamãe fazia cocadas de tudo o que se pudesse imaginar, e também o que não se conseguia imaginar, mamãe fazia e fazia bem feito; pode perguntar a qualquer um aqui em Santana. Não é verdade, Polissíndeto? E não é, Omissão? A verdade é esta aqui, Eufemística. A casa onde nasci e fui criado, Eufemística, era um lar doce. As estradas alagoanas são doces. Tudo em Alagoas é feito de açúcar. Vá à feira, Eufemística, e conheça a variação de frutas que em São Paulo não se compra.
Antes de sair de São Paulo, Eufemística recebeu orientação do professor de Antropologia, JCA, que usasse a senha, se quisesse ganhar a confiança do lugar. Qual, professor? A chuva, JCA respondeu-lhe.
Em Santana, Eufemística perguntou a Você ao vê-lo no bar:
– Vai chover?
– Só se Deus quiser!
– Você tem certeza.
Você olhou o teto do bar forrado de fuligem e teias de aranha. Atravessou uma das portas, na rua, olhou para o céu.
– Quem determina se vai chover é Deus. Se tudo o que a gente falasse e quisesse falar, acontecesse, o mundo tinha deixado de existir.
O Sr. Plutocrático passou com as burras cheias. Voltou o Sr. Plutocrático atrás das burras cheias de cinheiro.
Esta pergunta se chovia ou não chovia foi feita a Você, foi feita também a Antônimo, a Hipérbole e a Exagero. Fez Eufemística pergunta à Anáfora, fez a Exagero, que desabou numa conversa sem fim. Eufemística fez a pergunta a Repetição, fê-la a Antítese, e também à Metonímia. Outro dia, perguntou à Dona Troca.
– Vai chover, sim, minha filha! garantiu-lhe Dona Troca. Quando o tempo tá assim, geralmente chove.
– Mas não há nuvens no céu, Dona Troca.
– Isso é o que a minha filha pensa.
– Onde, Dona Troca?
– É só esperar.
– Tá bom! convenceu-se.
A pergunta sobre a chuva foi feita a Hipérbato, que logo inverteu o sujeito, verbo, complementos, feita à Inversão, que acompanhava Hipérbato. A questão alcançou Personificação, que jurou que não passava daquela noite.
Cada um daqueles que frequentava o bar de Bach foi alcançado com a pergunta de Eufemística. Os seus interlocutores tomam Eufemística como uma jovem que merecia atenção. Ela demonstrou fazer amizade com todos eles; logo percebeu que a tese do professor podia ser aplicada e surtir os efeitos desejados entre as figuras que surgiam em sua narrativa a ser construída na cidade como o epicentro do lampionismo.
A pergunta de Eufemística foi feita à Graduação, feita à Sequência. Até o padre fez uma preleção sobre a chuva.
Com esta prelação do padre, Eufemística fechou os olhos e se viu em São Paulo. Na sala de aula com o professor:
– A liberdade de cátedra, Eufemística, é direito fundamental garantido pela Constituição da República e assegurada na LDB.
– É?
– Não sabia?
– Ouvi falar.
– O professor, Eufemística, plenamente é autônomo na escolha das suas pedagógicas abordagens e o método que adotar nas ideias plurais. Veja o caso, Eufemística, na liberdade entre o ensinar e o aprender. Neste caso, preste agora atenção, quando se trata do objeto indireto. Eu só completo o sentido por meio de quê?
– Objeto indireto?
– Isso!
– Acertei? Não sabia.
– O sentido de nossas aulas... Aliás... O sentido de um verbo indireto é o termo que se completa. Entendeu?
– Não, professor.
– Entendo.
– Entende?
– Então, preste atenção à preposição. O termo que completa o sentido de um verbo transitivo indireto é a preposição.
– Preposição?
– Isso.
– Preposição.
– O objeto indireto, Eufemística, é o termo...
– ...Que completa...
– ...O sentido...
– O sentido, professor?
– De um verbo transitivo indireto. Entendeu?
– Não tenho certeza. É a liberdade de cátedra?
– A liberdade acadêmica, Eufemística.
– A liberdade?
– Pergunte ao verbo, que sou eu, o professor, o que você vê, caso haja a preposição.
– Preposição?
– Sim! cruzou os braços. Pergunte! insistiu.
– Liberdade de quê?
– Objeto indireto.
– A liberdade?
...
– E no caso, Eufemística, preste atenção, do objeto direto, este conclui o sentido de um verbo transitivo direto sem que haja preposição.
– Preposição, professor?
– O verbo, que sou eu, o professor, Eufemística, ajo.
– O quê?
– Isso, Eufemística! entusiasmado.
– Quem?
– Ao verbo, que sou eu, o professor...
...
– Veja o caso, Eufemística, das orações coordenadas sindéticas.
– Onde, professor?
– Nas conjunções, Eufemística, nas conjunções!
– Nas conjunções?
– Nas aditivas, nas adversativas, nas explicativas, nas adversativas, nas conclusivas.
– Entendi.
– Entendeu mesmo, Eufemística.
– Acho quê...
– As orações coordenadas assindéticas não toleram conjunção.
– Rejeitam?
– Elas são justapostas, Eufemística, justapostas.
– Justapostas?
– Como a liberdade de cátedra.
E depois da conversa com o padre, que havia entrado de maneira fortuita no bar ou por força maior, Eufemística fez a pergunta sobre a chuva à Metáfora, que teve uma crise de riso. Fez a Conotativo e também à Omissão. Não ficaram sem a pergunta Pleonasmo, Onomatopeia, Polissíndeto, Conjunções, Mas, Porém, Contudo, Portanto, Todavia e Entretanto.
Em São Paulo, ela tinha a preocupação com o horário de ônibus, o horário das aulas na universidade. Os horários nunca lhe foram pesados. Por mais que demorasse no metrô, jamais chegaria atrasada.
Acordava três a quatro horas antes de sair. Saía de casa sempre às cinco e meia da manhã. No escuro, chegava ao ponto de ônibus; amanhecia ao chegar ao metrô.
As boas notas lhe mantiveram a matrícula e a bolsa de estudo. O incentivo do orientador, era de que fosse realizar a sua pesquisa científica no sertão onde o pai de Lampião foi assassinado.
Por nenhum instante, Eufemística se desviava dos propósitos. Dentro dela havia algo como força sobre-humana que a impulsionava a ir a Santana iniciar as entrevistas e comprovar a hipótese alimentada pelo antropólogo orientador.
Como era inquietante nela reunir os livros, as roupas, os tênis e rumar em direção a Santana onde iniciar as investigações. Certa de que em Santana não seria recebida pelo silêncio.
À noite, bem tarde, às vezes sob o efeito etílico, na casa onde a acolheu, Eufemística tentava dormir, mas nem sempre conseguia fechar os olhos porque, mesmo com fechados, ela via pessoas que lhe perguntavam o que veio fazer em Santana.
– Uma pesquisa.
– Que pesquisa, Eufemística?
– Um trabalho de conclusão de curso.
– Mas que diabo é isso?
E por que explicar cada vez que conhece alguém? Ficava aborrecida por repetir-se.
– Ouvi dizer que você é uma sacerdotisa.
– Que história é essa?
– Você veio a Santana implantar a Associação das Aranhas.
Mesmo se explicasse mil e uma vezes, obrigava-se a repetir outras mil e uma. O seu TCC era sobre o epicentro do lampionismo. Ela veio à cidade para comprovar se a hipótese de que a morte do pai de Lampião lhe serviu de gatilho ao fazê-lo o que se sabe sobre ele.
Na cama, Eufemística tinha sobre a cabeça o peso que lhe puxava cada vez mais. Ouvia aquelas vozes confusas no bar. As vozes predominantemente masculinas. Viu algumas vezes o padre entrar e sair, como se fosse uma sombra; a figura do padre, sorrateira, entrava, fazia o fazia – comprava alguma coisa misteriosa, porque apenas Bach sabia o que era – e sai sem olhar ninguém.
Eufemística ia dormir sem ter o compromisso de acordar. Em Santana, ela experimentou o que desconhecia em São Paulo. Tocava em seus braços, tocava nas pernas e em outras partes do corpo, porém não sentia que se tocasse.
– Eu preciso descobrir o que o padre compra em segredo no bar.
– Se eu fosse você, Eufemística, não faria isso.
– E por que não, Ironia?
Havia sempre a sensação estranha, o ar estranho. O oxigênio já não era o mesmo, a atmosfera mudava aqueles penúltimos dias de agosto. Saiu de São Paulo com entusiasmo, este sumia. Como foi parar no bar de Bach? Ignorava. Foi uma indicação da amiga Ironia?
Ela nasceu e viveu em São Paulo por 22 anos. Por que alimentar o medo? Nem se acordasse no corpo de uma abelha, se falasse como ela ou pensasse e vivesse. A sua família ficou em Santana, SP, onde cresceu. Mas o que aconteceu ao bairro paulistano onde Eufemística cresceu? Um emaranhado de coisas lhe cercava e sumia nas primeiras horas da manhã.
A alegria de vencer a distância entre São Paulo e Santana inflama outro fósforo; surgia a luz de repente e de repente a luz morria entre os seus finos e longos dedos. A alegria não lhe servia mais de eletricidade e a pesquisa deixava de ser familiar?
– Foi um absurdo a ideia do TCC?
– Não, Ironia.
– Pelo que fala, Eufemística, perecia sacrifício.
E as expectativas de que Santana representa o epicentro do lampionismo se tornam caras. Nos primeiros dias na cidade, as expectativas apodrecem.
O trabalho de conclusão de curso passou a ser um fardo, e não era mais divertido como disse antes de sair de casa.
– ?
– ...
– !
Eufemística que se sentia tão útil em São Paulo, silenciosamente viu que perdia a utilidade. Santana aos poucos corroía os arroubos, as leituras, as pesquisas; entrevistas começaram a minguar, e as pessoas lhe evitavam quando o assunto era sobre os cangaceiros.
A cidade evitava falar sobre o cangaceirismo. Santana já não lhe era mais a promessa que foi indicada na bibliografia. Não avançava. Começou a planejar o retorno a São Paulo. Santana não lhe era mais essencial.
– Uma hora, Eufemística, a cidade ia fazer pagar por ser sacerdotisa, na Associação das Aranhas.
– Que é isso, gente!
– Como vou saber se também fui acusada! disse Ironia.
Voltaria a São Paulo. Faria outras cadeiras, na universidade. Iria repensar na hipótese que a trouxe ao sertão.
Eufemística reduzia a pesquisa a cada semana. Perdeu a produtividade.
E pensar que, há poucos meses, a pesquisa era mais importante do que a sua própria vida. Não era mais. Em Santana, só encontrou frustração. Pessoas, que antes abraçavam as suas ideias, lhe rejeitavam como se fosse o mofo sobre uma fruta. Eufemística disse à amiga Ironia que se enxergava ali como se visse no espelho como uma natureza-morta.
Não era mais novidade a novidade. Eufemística disse que a hipótese dela apodreceu e começou a adoecê-la por dentro. Procurava o ar, não o encontrava. O que era visto por fora nem poderia comparar-se ao mofo por dentro.
Eufemística comentou com Ironia que foi uma vítima dela mesma. Achei que fosse possível realizar a pesquisa, concluir o TCC, o curso como idealizei.
– Isso não era motivo pra...
– Foi Bach quem apresentou as pistas que eu deveria seguir.
– E você acreditou naquele vendedor de cachaça?
Foi um absurdo, ela disse, ter seguido a hipótese de que o lampionismo teve início em Santana. Tudo o que os livros disseram, disseram como um apelo comercial.
Santana sabe ser bem perigosa. Houve uma época em que uma mulher morreu a marretadas. Que horror! Esta notícia deixou Eufemística em pânico. A partir daquele fato, ela desenvolveu a patologia de só conseguir comunicar-se com o uso de marcadores linguísticos; sem eles, não ia muito longe a estrutura de seu discurso.
Qualquer texto, fala, ideia, Eufemística metia um talvez ou um além disso. Saí por aí com além do mais, quando queria estruturar as ideias; contrastava com por outro lado ou mesmo entretanto aqui, no entanto e às vezes acolá.
As informações de Eufemísticas tinham dúzias de além disso. Um talvez, igualmente ou também.
Santana começou a aborrecer-se com Eufemística por causa destes marcadores linguísticos que nela abundavam. Só concluía com em resumo e até mesmo algum portanto ou em conclusão.
Quando queria exemplificar um assunto qualquer, Eufemística socorria-se aos comuns por exemplo e como exemplo. Sem esquecer marcadores de edição – eles faziam lama na boca de Eufemística, segundo os comentários de Bach ao Delegado Severo Açoite.
– Era além disso pra cá, era também. Uma montanha com e.
Os marcadores de contrate tropeçaram nos bate-papos da paulistana. Se não fosse mas, era entretanto. Depois vinha a enxurrada de marcadores de causa e efeito com porque e consequentemente. Os marcadores de tempo? Ah, esses aí então, comentava Bach, o dono do bar, eram de correr com depois, agora e antes ou anteriormente.
– Por que, compadre, essa gente trazia esses marcadores de São Paulo a Santana?
– Oxi! reclamava. A peste é quem sabe.
Derramava coesão textual de rua em rua; em uma deixava clareza, noutra organização das ideias na confecção do TCC. Eufemística falava em coerência, em compreensão das ideias, na eficácia. Conversava com a variedade de temas trazidos na mala com as variedades vindas de São Paulo.
– E quem se preocupava com São Paulo!
– Compadre, eu vivi lá; aquela terra era coalhada de excessos.
Presenciei, no bar de Bach, Eufemística debruçada no balcão de Bach, e cara a cara, ele perguntava a ela quem era o tal professor de Antropologia que a fez visitar Santana. Porque ele mesmo, Bach, dono do bar, não acreditava que a cidade fosse o epicentro do lampionismo. Eufemística, jogada sobre o balcão, disse-lhe que era aquele autor de “Santana: Epicentro do Lampionismo”. Bach havia lido.
– Ele é uma autoridade sobre esse tema.
– E por isso te deu a missão de caçar testemunhas aqui em Santana?
Eufemística disse a Bach que o Prof. JCA, tinha liberdade de cátedra e era autoridade com o título “Santana: Epicentro do Lampionismo.”
Senhores, o antropólogo pernambucano de São Paulo argumentou com paixão e coberto por louvores, disse Alexandrino Escansão, que estava em uma mesa num jogo de pedras. Disse coisas inauditas sobre o tal de cangaceiro, que pendurou as xobois; saiu, e foi viver como roceiro. Plantou roça, xaxou feijão; e bateu firme e ritmado, e foi em cima e foi em baixo com um porrete nas mãos; separou os grãos das vagens – vagens boas e vagens ruins – e colheu milho, mais tarde, espigas gordas e banguelas; levou tudo à panela com carne de porco assada. Deu som, conheceu mulher, deu olhar e deu xaxado, com a xaxa do feijão; ambos fizeram bom bocado nos remelexos das pernas, no avançado dos pés, nos dedos entrelaçados, entre as mãos o tal bordado. Na cama de vara, as bocas se misturaram, os olhos se fecharam na batida do clavinote no chão, qual os cabras no cangaço no tempo de Zé das Cruzes, que em gibis foi publicado. E foram tantos os gemidos, corpos que não se desgrudaram, chuvinhas, tiroteios e rojões, que deles nasceu um menino. A colheita espraiou-se no roçado. Ambos amontoaram assuntos, repetiram três vezes ao ano o bater nas vagens; vieram filhos em rumas, encheram o mundo de almas. Foi quando surgiu o tal Abusado, um coronel das quebradas, que contratou desocupados e fez deles a jagunçada, e empesteou tudo em torno, Abusado Fétido, o Malcheiroso, doido, queimou roça à vontade, feroz, derrubou cerca e fez passar o seu gado, expulsou pai, mãe e filhos com tiros nas casas de taipa; pôs a abaixo casa de farinha, furou açude, e viu avoar rolinhas. O tal cangaceiro, argumentou à aluna Eufemística o professor, cego, alfaiate, cordelista, já velho, doente, parado, preso ao balanço na rede da qual nunca mais a deixou, condenado a doença perpétua. Fez sinal à Pepeca, a boa e velha companheira. Vá. Ligeira, desenterre as minhas armas. E apontou o cemitério. Vá. Ligeira reúna novos e velhos, e mande as meninas e os meninos brigarem. Pepeca correu Santana, procurou o soldado que deu causa a morte do pai do cangaceiro. Ouviu tantas vezes dele, desista, muié, desista. Não, não faça isso, não, por amor ao Sãossãossãossão. Pepeca reuniu as armas, as filhas e os brutos filhos, e fez deles a sua vingança. Era morto o mês de abril. O coronel os jagunços alvos de facão, faca, punhal. Naquele mês, choveu balas. Foram tiros tantos ocos, os corpos crivados, as balas, desencontradas, fizeram da rede peneira onde o velho, companheiro de Pepeca, repousava; correram as fitas de sangue nos buraquinhos da rede e o velhinho descansou. Pepeca correu estrada aos prantos, aos gritos. Valei-me meu Papai Figo! Roubaram do dia a luz. Correu no céu uma tripa, outra correu atrás; quando menos se esperou, não paravam de correr as tripas de fogo quais asas de intenso azul, vermelho, amarelo, verde no corpo das araras.