
Assassinato do presidente líbio Muammar Kadafi, um símbolo do imperialismo norte-americano
No resgate da episteme, acerca das principais características do imperialismo, nosso querido “agente russo” Vladimir LÊNIN aduziu que, entretanto, as definições excessivamente breves, se bem que cômodas, pois contêm o principal, são insuficientes, já que é necessário extrair delas especialmente traços muito importantes do que é preciso definir. Por isso, sem esquecer o caráter condicional e relativo de todas as definições em geral, que nunca podem abranger, em todos os seus aspectos, as múltiplas relações de um fenômeno no seu completo desenvolvimento – ipisis verbis. [1]
Não se trata de preciosismo filológico. BACHELARD acerta em cheio quando define o conhecimento como um modo de criação contínua, onde o antigo explica o novo e o assimila, e vice-versa. Por sua feita, o conceito é elemento de uma construção e só tem sentido pleno numa construção – diz [2]. Vinte anos antes da BACHELARD, o mesmo LÊNIN destacara que, desde Hegel, Marx e Engels, a dialética reconhecia a relatividade de “todos os nossos conhecimentos”, não para negar a verdade objetiva, mas para relacioná-la à condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos àquela [3]. E bem muito antes de Lênin, o prestigioso filósofo francês V. BROCHARD, em “Sobre o erro” (1879) assevera que, uma coisa é pensar o verdadeiro ou falso, outra é afirmar ou acreditar que uma proposição é verdadeira ou falsa. [4]
Três notas
1.A definição “russófona” de “guerra híbrida” foi espraiada especialmente pelo pesquisador Andrew Korbiko, para quem: “O objetivo é provocar a fragmentação estratégica de facto e de jure de um Estado a fim de desestabilizar as grandes potências euroasiáticas (Rússia, China e Irã) e prolongar a supremacia estadunidense no supercontinente” (“Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes”, A. KORBIKO, 2018 [2015], São Paulo, Expressão Popular, Cap; 4, p. 91). Essa particularidade de objetivo, ainda que haveria uma suposta junção da “guerra não convencional” com a “revolução colorida” [5], obstaculiza qualquer transposição esquemática para, por exemplo, a América Latina, dado ao pretendido efeito cascata – Balcãs, Ucrânia, várias ex-repúblicas soviéticas etc. – que o suposto hibridismo teria que obter. Nas palavras de Korbiko, “a criação de buracos negros de instabilidade e caos perto de suas fronteiras” [do alvo] (p. 97).
Conforme o reconhecido teórico brasileiro da estratégia Darc COSTA, entre outras considerações, “pode-se considerar que a guerra híbrida é um conflito no qual no qual todos os agressores exploram todos os modos de guerra, simultaneamente, empregando armas convencionais avançadas, táticas irregulares, tecnologias agressivas, terrorismo e criminalidade, visando desestabilizar a ordem vigente em um Estado Nacional”. COSTA, ainda, distingue-a bem da “guerra assimétrica”, na qual esta ocorre em “ações mais espaçadas no plano internacional” (“Os novos tipos de guerra” em: “Cadernos de estudos estratégicos”, Escola Superior de Guerra-Centro de Geopolítica e Estudos Estratégicos, nº1, março/2019, pp.23 e 25).[6]
2. G. ARRIGHI é autor dos principais a difundir o conceito de “caos sistêmico”. Para ele – que previu uma “crise terminal” (p.368) [7] da hegemonia americana em 1994, e a ascensão econômica fulgurante do Japão -, um “caos sistêmico” se caracteriza por:
“[…] uma situação de falta total, aparentemente irremediável, de organização. Trata-se de uma situação que surge por haver uma escalada do conflito para além do limite dentro do qual ele desperta poderosas tendências contrárias ou porque um novo conjunto de regras e normas de comportamento é imposto ou brota de um conjunto mais antigo de regras e normas sem anulá-lo, ou por uma combinação destas duas circunstâncias. À medida que aumenta o caos sistêmico, a demanda de “ordem” – a velha ordem, uma nova ordem, qualquer tipo de ordem – tende a se generalizar entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer Estado ou grupo de Estados que esteja em condições de atender essa demanda sistêmica de ordem tem a oportunidade de se tornar mundialmente hegemônico” (Arrighi, “O longo século XX: dinheiro e poder e as origens do nosso tempo”, Rio de Janeiro, Contraponto, 1996 [1994]).
Ou seja, ARRIGHI não disse absolutamente nada; o vazio é muito! Seu livro é um completo fracasso em prognósticos e análise, como a fraude de que o crescimento econômico chinês se deveria à “expansão chinesa ultramarina” de sua burguesia em diáspora! Aliás, quando redigiu o pós-escrito para a segunda edição de “O longo Século XX” (março de 2009), o pensador italiano apresentou o motivo de, neste livro, não ter mencionado a China como possível herdeira do declínio hegemônico dos Estados Unidos: afirma que, à época (1994), não estava plenamente consciente da extensão e das implicações do ressurgimento do papel da China na economia política do Leste Asiático! (aqui: https://lightpdf.com/docs/yx1mk5c)
Mas, note-se bem: ARRIGHI, ainda em 1997(a), após afirmar que “a acumulação capitalista pode estar se aproximando de seus limites históricos”, arremata de maneira obviamente catastrofista: “O próximo [ciclo de] Kondratiev bem poderia ser o último”. Para asseverar, a seguir, que sendo a principal razão do crescimento chinês, “a diáspora capitalista tornou-se o principal intermediário entre os negócios japoneses e locais em Cingapura, Hong Kong e Taiwan”. E concluir: a expansão industrial na China, no início dos anos 90, não é arauto do ressurgimento de um (suposto) sistema mundial sino-cêntrico, “mas sim da expansão para o Leste Asiático do caos sistêmico que já mostrou as garras em outras regiões da economia mundial” (1997b). [8]
Giovanni Arrighi foi um historiador errático e leviano.
3. Como procuramos argumentar, não é cabível, ao menos por agora, afirmar que o Brasil está hoje sob uma “guerra híbrida”. A ofensiva atual do neofascista D. Trump é global, não é particularidade brasileira. Assemelha-se assim, teoricamente, ao que se denomina de “guerra assimétrica” que estão ao EUA a travar. Como detalha D. COSTA: a guerra irregular é a do espaço amplo; a assimétrica é a do espaço ilimitado; a híbrida é a do espaço delimitado (Op. cit., 2019, p.27).
O eminente brasileiro historiador e cientista político L. A. MONIZ BANDEIRA não à toa denominou seu último e excelente estudo (2016) de “A desordem mundial: o espectro total da dominação: guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias”. Ele recorda ali que o ex-presidente americano Obama, em aliança direta com o francês F. Sarkozy e o britânico D. Cameron, ordenou o bombardeio da Líbia, que culminou na morte – fuzilado e por empalamento – do então presidente líbio M. Kadafi. Segundo Moniz Bandeira, as matanças, o caos e as catástrofes humanitárias dilaceraram o Afeganistão, Iraque, Iêmen, Gaza e países da África – este o verdadeiro sentido de “caos” revelado pelo historiador. [9]
O Brasil enfrenta, neste momento, ainda os desdobramentos de uma tentativa de golpe de Estado perpetrada às claras, em janeiro de 2023. Há a busca de extensão do golpismo, comandada pelo bolsonarismo, em conluio com setores do agronegócio e parte da oligarquia financeira e da chamada mídia corporativa. A propósito, a recente contratação pelo jornal Folha de S.Paulo, do ex-presidente do Banco Central e indicado por Bolsonaro, Roberto Campos Neto, como “colunista” (!), é emblemática do sistema de alianças desenhado para sustentar o contra-ataque ao evidente declínio do império americano.
Não se trata – enfatizo – de descartar formas de guerra, que possam a vir se combinar para esmagar a soberania e a democracia, já tão aviltadas no nosso país. Trata-se de compreender os pontos nevrálgicos da ofensiva imperialista atual; o essencial.
Assim – e a exemplo -, quase 200 anos depois da “guerra do ópio” contra a China, Trump deflagra uma guerra comercial global movida pela mesma lógica imperial da “extraterritorialidade”, isto é, a disposição de impor unilateralmente, pela força ou pela coerção, a autoridade do seu Estado para além das suas fronteiras nacionais – assevera o cientista político Luis FERNANDES (“O tarifaço é a nova guerra do ópio”, “O Globo”, 31/07/2025).
O alvo de Trump – assinala o professor R. CARMONA – é o papel do Brasil na conformação multipolar das relações de poder mundial, questão do nosso interesse nacional direto (“Hora do Povo”, 07/08/2025).
NOTAS
[1] Ver: o capítulo VII de “O imperialismo, fase superior do capitalismo”, Obras Escolhidas, v. 1, Lisboa, Avante!, 1981, p.641.
[2] Em: “Ensaio sobre o conhecimento aproximado”, G. Bachelard, Rio de Janeiro, Contraponto, 2004 [1928], pp. 19 e 23.
[3] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reaccionária”, Lisboa, Avante!, 1982[1908], p.101.
[4] Em: “Sobre o erro”, Victor Brochard, Rio de Janeiro, Contraponto, 2008[1879], p.101.A influência assumida por Brochard, de I. Kant, de modo algum dificulta-me em recomendar esse inteligente livro.
[5] Em “Sob o céu de junho. As manifestações de 2013 à luz do materialismo cultural”, F. PALACIO faz extensa e detalhada análise das “revoluções coloridas”, distinguindo-as e as identificando. São Paulo, Autonomia Literária, especialmente, Cap 2.
[6] Ver também, como pano de fundo da situação internacional à época, “Guerra contínua pela supremacia mundial na Era da Quarta Revolução Industrial”, de R. CARMONA, no mesmo nº dos Cadernos de Estudos Estratégicos, Op Cit.
[7] De outra parte, não foi fortuita a “resposta” de Conceição TAVARES e E. MELIN, em “A reafirmação da hegemonia americana”, escrito em 1997 (“Poder e dinheiro: uma economia política da globalização”, Petrópolis, Vozes).
[8] Ver, respectivamente: “Costume e inovação”, G. Arrighi, em: “A ilusão do desenvolvimento”, p. 49; e “A ascensão do leste asiático: aspectos regionais”, ibidem, pp. 125 e 128. Petrópolis/Vozes, 1997 (a e b).
[9] Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p.145.
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