Naquele dia, em Santana, a neblina comeu o céu, a neblina comeu o rio, comeu a ponte, comeu a rua, a casa, o quarto, a cama, os olhos, a boca, o corpo, a alma, comeu a cidade.
À época do Caso Eufemística, as investigações não foram levadas a sério; no Diário de Santana, fatos e opiniões surgiram à exaustão, atravessaram limites do município, mas não chegaram a São Paulo. Chegarem à cidade os familiares de Eufemística, a dor pranteada, as buscas por respostas caíram no vazio, dia após dia a oitiva dos que conviveram com a jovem Eufemística em Santana sem êxito. Você foi ouvido, e disse à lei que nem mesmo em sonho teve a honra de chegar próximo à Eufemística, porque naquele inverno de terrível notícia Você sequer se encontrava na cidade por ter ido fechar negócios de arroz em Pão de Açúcar. Nos primeiros dias, a cidade estava polvorosa. A lei correu e ouviu Antítese e, no dia seguinte, foi ouvido Antônimo. Ouvidos Hipérbole, Exagero, Bach, o dono do bar, Anáfora, que chorou ante as perguntas do Delegado Severo Açoite cujo escrivão viu sumirem três caixas de lenços. Exagero, bêbado às quedas, que havia adiado ao máximo o seu depoimento, trouxe três advogados e estes o orientaram que falasse sobre a secreta Associação das Aranhas cuja uma das sacerdotisas era Eufemística, Exagero falou sobre a Associação dos Marimbondos que ameaçava a existência da Associação das Abelhas e foi ridicularizado. Repetição, chegou à delegacia e falou meia pedra e meio tijolo, Antítese, que levou um advogado e optou em ficar calada, Metonímia, que disse desconfiar de certas pessoas em Santana, não abriu a boca porque lhe faltava a certeza necessária cujas matérias no Diário abusavam, Dona Troca, que levou um terço e voltou várias vezes às mesmas contas, além de Hipérbato, que falou tudo o que sabia e o que não sabia falou também, Inversão, que assegurou no depoimento jamais ter dirigido uma única palavra a Eufemística. Depois foi a vez de Personificação, que se lembrava ter pago uma ou duas cervejas à Eufemística e nada mais além disso exceto o dia em que a levou até à porta da rua onde ela viveu. Graduação, citado pela polícia e foi ouvido em um leito hospitalar porque se recuperava de outra cirurgia bariátrica. Foram à delegacia Sequência, o padre, que jurou por Santana nunca ter entrado naquele bar e só conhecia esta Eufemística de ouvir falar. Metáfora, que teve uma crise de riso, e o funcionário público municipal, Conotativo, que chorou em cada item e desmaiou várias vezes, além de Omissão, que estava em campanha. Foram ouvidos Ironia, Pleonasmo, Onomatopeia, que disse que não merecia ser humilhado como foi, Polissíndeto, Conjunções, Mas, Porém, Contudo, Portanto, Todavia, Entretanto, que ficou mas... mas... Na delegacia, no sábado de manhã, na semana seguinte, foi ouvido o homem das burras cheias, Plutocrático, que jurou só tê-la visto de passagem uma ou duas vezes.
Plutocrático passou na rua com as burras cheias. E Plutocrático retornou com as burras de dinheiro. Sequer olhava se em cada lado algum dia havia lado; ele só tinha olhos nas serras que circundam Santana.
Omissão, em qualquer palanque disponível, era uma verdadeira explosão morfológica. Enchia os pulmões de substantivos, jogava artigos à plateia e tinha nos bolsos um adjetivo ou dois, discorria sobre pronomes, os verbos escorriam no canto direito da boca, os numerais pululavam em seus olhos, saltava advérbio e as preposições provocavam aplausos do público, conjunções eram tapinhas nas costas, apertos de mãos, promessas à vontade, dele se ouvia com frequência a variação de interjeições. Às vezes variáveis e outras invariáveis, Omissão erguia os braços, o povo também erguia:
– Lua encontra-se cheia! disse Omissão. E, em torno dele, o povo festejou com aplausos, após breve pausa com olhares em busca de reconhecimento. Lua minguante amanhã! disse Omissão, nova pausa, e logo respondida por efusivos aplausos. Todas as águas dos oceanos são uma gangorra que passam o dia no sobe e desce! mais calorosos aplausos, desta vez acompanhado pelo coro “tá-eleito-tá-eleito-tá-eleito! que aumentava de volume e tomava as casas, as ruas, os bairros. As marés de sizígia são fortes, são fracas as marés de quadratura.
À tarde, ouvi, no bar de Bach, Antônimo conversar com Eufemística.
– Como é São Paulo?
– Não conhece?
– Nunca tive esse desprazer, Eufemística.









– ...
– Eu já bebi demais, Sr. Antônimo.
– Mais um copo, Eufemística.
Foi uma das últimas vezes que vi Eufemística. Ela deixou o bar com Antônimo. E soube que, naquela noite, Eufemística quebrou o pé. O pouco que ouvi a conversa entre eles, Antônimo falava sobre a cidade, disse que nasceu, foi batizado, crismado, certificado e criado em Santana da qual nunca saiu, na qual pretende morrer.
Antônimo, desde a época do grupo escolar, alimenta a fixação pela morte, adora o cheiro da fumaça que escapa dos castiçais na igreja, das noites onde se vela os defuntos, dos diálogos sobre o fim da vida. Os crimes bárbaros na cidade eram cercados por Anônimo. Ele, no dia seguinte, antecipava o Diário, enchia o povo de pavor em torno dos crimes.
Antes do primeiro bacurau cobrir a noite, o poeta, ajudado pelo amigo Personificação, entrou no estabelecimento. E pediu um copo e uma cerveja; ela escorreu gelada, chegou à borda do copo de vidro com figuras de cactos.
Bach, o dono do bar, mudou depois da sessão de cinema com Ironia? Ele deixou de usar aquele imundo trapo às costas, os chinelos de dedos substituídos por xobois, terno de linho branco da cor do chapéu de couro com barbicachos, rapou a cara e reduziu o bigode a um risco. O bar, cujo nome é O Bar, aberto até altas madrugadas das terças às quintas-feiras e, finais de semana, não fechava mais. Ironia transformou Bach?
Como todo dia da poesia de cordel, a sobremesa é outra atividade laboral, como a fábula usa animais em suas viagens antropomórficas, e o apólogo usa coisas inanimadas. Veja o caso do chapéu de palha de ouricuri que fala com as orelhas do matuto, é a personificação do objeto chapéu a proteger cocuruto. Veja o caso do sabiá, que só sabia assobiar, mas no dedo do matuto fez canções do exílio avoar e recebeu humanas características, bebeu nas mesas do bar de Bach e contou somas e somas de dinheiro com o Sr. Plutocrático. Os contos contados pelas vozes multifacetadas do folclore conto, que contava mentiras por verdade, como fez o vendedor de lamparinas. O conto é só uma mentira que se faz com arte e criação. E encho a glosa de versos, sou pelo canto guiado! ecoou a voz do cego Alexandrino Escansão lendas, roça e rua, o cotidiano no cangaço e as lutas no escuro. Tantas histórias de amor nos romances, nas sextilhas, nos versos de linhas ligeiras como fazem os jornalistas. Eventos que viajam em rios voadores de versos entre histórias socioeconômicas. Correm em veias o humor, às vezes a maledicência – como dizem as folias aos foliões. Quantas realidades perdidas! Tudo, na poesia de cordel, se acha na voz do cantador; se acha o arruaceiro e o bêbado, o chifrudo, a chegada ao céu e a descida ao soturno! preencheu Alexandrino Escansão ao chegar ao bar de Bach.
– Que tem feito, poeta?
– Eu versejo que nem a bexiga! respondeu o cordelista. Cada pensamento que tenho é ouro que escorre de riba. Noticio na rima o que vem de baixo ou de cima. Vida, pois, é sempre surpresa. Viver é rever as quebradas no sertão, e as mentiras atravessam o Rubicão.
Alexandrino Escansão aproveitou o mote de improvisou e começou a sua glosa:

Crente em destruir o céu a pedradas,
Vi, a sua língua passou a ser chicote.
Foi Melindroso feito um valente tetéu;
Mostrou bravura sem tê-la no pacote.
Amarrou nas botas coloridas esporas,
Pisou firme e agiu dobrado de chapéu.
Estrada afora sem demora assobiava
Melindroso, não era de perder a rima.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

Corra logo, vá na frente, eu vou atrás.
Não se demore jamais nesta estrada.
Diga tudo isso ao compadre Satanás.
Porque ligeiro junto mais almas a ele.
Deu-lhe mapa. Veja escrito nas folhas.
Siga sempre por tenebrosos caminhos.
Cubra esse mundo de penas e de ais.
Vá logo e Satanás será o conselheiro.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

Pregou por dias Antônio Conselheiro:
Se o povo pensa, repensa e não sabe,
Povo tem a semana inteira pra rezar,
Dias e dias de jejum e dobrar joelhos.
Preste atenção, não vou dizer de novo,
Preze meu povo o que tem que prezar.
Morte vulgar por emboscada é novelo,
Seca, fome se desenrolam ano inteiro.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

Afoito, Melindroso foi correr os pastos;
Procurou, pegou, selou cavalo do Cão.
Foi rápido, deu-lhe esporas com gosto.
Pulou, rodopiou, ciscou e deixou sertão.
Melindroso recebeu a alcunha de Afoito.
Não tardou, saiu nas páginas de Agosto.
Melindroso Afoito berrou alto, gritou oito.
Levado, caiu na escura areia movediça.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

Melindroso subiu morro e virou serra,
Viveu em um só dia todas as estações,
E correu o deserto e logo comeu terra.
Viu de longe presepadas de Virgulino.
Foi dito: Careço de defensor na causa!
Melindroso anunciou assim ao cabra.
Virgulino fechou olho, fez-se de rogado,
Estudou demorado o otário Melindroso.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

Melindroso bateu nas portas do inferno,
Foi cabra tão dissimulado e tão maldoso,
E logo ele fez selfie, pediu Pix a Satanás.
Fez ameaças, chutou gradis nos portões,
Babou Melindroso, fez juras de vingança,
Correu, foi pedir licença a mãe de Lúcifer;
Ela embaralhou o tempo e correu o troco.
E o Afoito pensou muito e pensou pouco.
Ih... viver é rever as quebradas no sertão.
Oxente! Mentiras atravessam o Rubicão.

Muitos ratos viviam soltos nas ruas,
Viviam no lixo e em todas as praças.
Como corriam os fedidos em esgotos.
Rápidos os trambiqueiros estúpidos.
E andava um dia a sorte nas poças:
As águas sujas que refletiam a Lua.
Ratazanas, sedentos camundongos
Foram beber da sorte na água suja.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

Entraram no armazém pelas frestas,
Brigaram, correram, pularam, sorriram.
E foi uma noite repleta de tanta festa.
Ágeis, eles comeram queijo à vontade.
Rápido como quem rouba, eles roeram.
Amanheceu o armazém neste cenário
Com as parcas tintas de famintos ratos,
Mas os ratos foram cercados por gatos.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.


Bebê e babá foi a fala do Melindroso.
Correu solto, soltou peia folgada no ar.
Chutei bola, ganhei prêmio, li o Baobá.
E quem chega ao inferno não sai de lá.
Toda a feira a canoa leva ao balançar.
Nunca bebo mais cachaça boa, Mariá.
Palavra sobe, avoa no canto do sabiá;
E não permita que o verso hoje morra.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

Sossego corre, escorre no escorrego.
O borrego e a borrega lá no cercado
Comem pasto e bebem água do gado.
Vi acontecer, outro dia, aqui na cidade,
Santana coberta por nuvens escuras;
Chuva boa, e choveu foi bom bocado
Como se todo socorro do céu viesse.
Pedido de riqueza ao céu com prece.
Viver é rever as quebradas no sertão,
E as mentiras atravessam o Rubicão.

– O amigo Mote, poeta, disse Bach, ontem, bebeu naquela mesa de canto.
O poeta não a identificava. Tateou a bengala a esmo:

O cordel de Alexandrino Escansão?
Contra ele vi pelejarem os mouros,
Lutaram com palavras os lusitanos.
Alexandrino Escansão solta cordel;
O vento bate na feira, avoa o papel.
Bach, os meus versos caem do céu.

– Perguntei ao Mote por que se sentava sempre na mesma mesa de canto ao lado da mesa de sinuca. Ele disse que a mesa é o ponto de partida. A caravela portuguesa foi feita em cima de uma mesa.
E o poeta Alexandrino Escansão ergueu a cabeça, tirou o chapéu de palha de ouricuri e assuntou:

Se não sou da sextilha;
A setilha é tuas ventas.

– Outro dia, ouvi da boca da Glosa, poeta, casada com o amigo Mote, que sempre coube a ela desenvolver o tema de casa. O sonho do filho Estrofe era o de ir viver em São Paulo.
Alexandrino Escansão deu de ombros. Vilancico e Verso jogavam sinuca. Rodeiam a mesa como quem brinca e, na borda da mesa, esquentam os copos de cerveja.
Sequência meteu-se mundo afora com Graduação. Este continuava longe e aquele voltou à cidade tatuado dos pés à cabeça. Exibe as tatuagens feitas na Nova Guiné e na Nova Zelândia.
– Voltou quando, Sequência?
– Ontem, Bach.
– E não ficava longe do bar?
– Nunca.
– E o que viu?
– Tanta confusão, meu irmão, tanta história pra contar, meu amigo.
Por trás do Diário de Santana, acompanhei a conversa.
– Vi todos os oceanos e mares. E presenciei as variações oceânicas. Dia após dia, o oceano respira, fica cheio e esvazia. Os pulmões da Terra são assim ó, meu patrão, e de tão grandes, ela só consegue respirar quatro vezes por dia.
– Notícias de Graduação?
– O maluco se foi no balanço das marés. Graduação disse que só voltaria a Santana quando dividisse o oceano, que se transforma quatro vezes com duas marés cheias e duas vazias.
– Ah! disse um bêbado a outro. Cuma é, homi? virou outra branquinha, que lhe arrebentou a garganta. Bota outa, Seu Bá! bateu com o copo no balcão.
Bach serviu-lhe a cachaça. Retornou à conversa com Sequência.
– O Efeito Coriolis...
– E o que peste é isso, Sequência!
– É o efeito, Bach, como acontece com quem bebe e se altera; a alteração aparente das águas nos oceanos, Bach, por causa da rotação da Terra.
– Embrulha o estômago, é? Ouvi falar.
– Esse efeito faz com que o ar, que surge em massas, faça curvas n’água e ela perde o rumo da venta. A parte de cima sopra à direita e o Sul à esquerda, Bach. Nos polos a coisa pega. As velocidades da Terra são doidas, meu amigo; se no miolo o giro é veloz, nos polos o assunto é diferente...
Empolgou-se o tatuado Sequência. Arregaçou mangas compridas de sua cinza camisa, surgiram figuras abstratas. Ninguém se importava com Sequência. Ouvi entre gestos de abrir os braços, bater na mesa, explodir em gargalhadas, e dizer seiscentos diabos e mil pestes. Bach e Sequência discutiram sobre o vento terral, que alisa o lençol das águas marítimas ao ventar da terra; mar, quando se zanga, solta o vento maral e agita as ondas. Os dois abriram várias garrafas de cerveja e viraram alguns copos de vidro grosso com aguardente. Tira-gosto com sarapatel. Falaram na maré de quadratura no quarto crescente, falaram na maré de sizígia nas luas cheia e nova. Mais cachaça, mais cerveja, mais sarapatel. E falaram na campanha de Omissão que ia de vento em popa. E não mais se falava na morte de Eufemística. Voltaram ao alinhamento da Lua, da Terra e do Sol; os temas foram de preamares com marés altas e baixa-mares. Eles voltaram a falar de luas minguante e quarto crescente, que provocam preamares e baixa-mares. Discutiram a gravidade não ser opinião e, sim, fato, apesar da existencial crise e descredibilidade das ciências. Mais flechadas, dilemas, entorta-cano, e voltaram à cerveja. Grandes, grandes marés com sizígia. Mais engasga-gato. Quadratura nas pequenas marés.
Interrompi a leitura do Diário.
Bach e Sequência meteram-se nas correntes quentes e frias. Nadaram as correntes do Golfo, no Atlântico, provocaram chuva em Santana; logo avançaram à Corrente de Humboldt, no Pacífico, e ambos reduziram a umidade, e fizeram diferentes pinturas desérticas do sertão.
Estávamos no dia 22 de agosto, quando o folclore é celebrado. E naquela mesa de canto, no bar de Bach, Alexandrino Escansão, sentado, e nas ossudas mãos o pandeiro, sobre a mesa copos, garrafas. O poeta erguia a cabeça e dava boas gargalhadas:

Fui criança, pode não parecer, não.
Fui do tempo do folclore e tradição.
Fui buscar água de ancoreta no rio;
Ancoreta também é folclore; desafio.
Fiz assombração, mal-assombro fiz;
Também é folclore a gaiola da perdiz.
Folclore é o Panema que bebe água,
E folclore é a cruz à beira da estrada...

Não perdi a oportunidade de concluir, frente a frente com o gol, com este poético desafio ao poeta dos improvisos:

É o ralador de milho que vovô faz
Com lata de óleo, quando ela jaz.

Alexandrino Escansão parou. Assuntou. Tremulou os dedos no couro do pandeiro. Abriu a boca. Explodiu a gargalhada. Iniciou-se a guerra dos desafios. E os frequentadores, no bar de Bach, se perguntaram como alguém que nunca foi à escola, jamais teve a oportunidade de experimentar a comunicação por letra no papel escrita a lápis, caneta ou bico de pena, saber tanto com tão pouco saber sobre as letras. Em tempo algum se ouviu tantos aplausos, tantos festejos agora no bar de Bach tomado pelo reisado, pelo medo de espelho quebrado, pedidos às estrelas cadentes, triturar no liquidificador manga com leite, insistentemente reclamar do queimor na orelha esquerda e pedir sorte à louva-a-deus.