O crepúsculo do Ocidente – Anatomia de uma crise anunciada
Passagem de uma ordem unipolar para um sistema multipolar mais complexo, fragmentado e contestado traz mais incertezas e riscos. Contudo, carrega o potencial de ser mais justa e representativa.
Publicado 03/10/2025 17:27 | Editado 03/10/2025 17:28

Fundado em 2004, o Clube de Discussão Valdai tornou-se um dos principais fóruns de reflexão em política internacional com base na Rússia. Embora frequentemente descrito por críticos como um instrumento de projeção da visão do mundo russo, reúne anualmente acadêmicos, formuladores de políticas e intelectuais de todo o globo para debater os desafios mais urgentes da ordem internacional.
Desde 2014, o Valdai ampliou seu escopo para além da “explicação da Rússia ao mundo”, buscando promover o diálogo entre elevadas mentes intelectuais globais e contribuir para respostas qualificadas aos desafios do sistema internacional.
A 22ª edição ocorreu na cidade de Sochi, Rússia, entre 29 de setembro e 2 de outubro, estabelecendo como lema “O Mundo Policêntrico: Instruções de Uso”, uma constatação do que para muitos já se tornou uma realidade: vivemos no mundo multipolar, ainda que em uma longa e dolorosa travessia. “É preciso saber (con)viver”
A principal conferência contou com 140 participantes de 42 países, incluindo Argélia, Brasil, China, Egito, Etiópia, Alemanha, Índia, Indonésia, Irã, Cazaquistão, Malásia, Paquistão, Rússia, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido, Estados Unidos, Uzbequistão e Venezuela. O presidente Vladimir Putin, presente desde a fundação do Clube, continua a ser a figura central do evento, não apenas por seu peso geopolítico, mas por suas análises abrangentes do tabuleiro global. (Esse tema, merece, por si só, um artigo à parte)
Li alguns materiais produzidos e acessíveis na seção/aba da 22ª Reunião no site do Clube Valdai (1), sendo que quatro deles concentraram maior atenção, cito-os: “O Século XXI Começou?”, de Andrey Bystritsky (2); “Mudanças Tectônicas na Geopolítica: Não Estamos Mais no Kansas”, de Paulo Nogueira Batista Jr; (3) “Multipolaridade e o Sistema Internacional da Carta”, de Richard Sakwa (4); e “Dr. Caos – Ou: Como Parar de se Preocupar e Amar a Desordem” (5), relatório elaborado por seis pesquisadores/diretores do Valdai.
A seguir embarco no que considero as ideias centrais do pensamento dos seus autores e divido com vocês minhas percepções primárias.
O mundo mudou
Vivemos um tempo em que o discurso do “fim da história”, tão propagado nos anos 1990, revelou-se apenas como uma ilusão. O que assistimos hoje não é uma revolução provocada por potências externas contra o Ocidente, mas, sim, o resultado de um processo de implosão.
A democracia liberal, que por décadas foi vendida como um ideal universal, perde não só força fora de suas fronteiras como se desgasta por dentro, corroída por suas próprias contradições, como a supremacia de um discurso de liberdade individual em conflito com a vigilância em massa.
A crise que atravessam os Estados Unidos e a Europa não nasce da ascensão da China, da Rússia ou mesmo dos BRICS – ela brota do esgotamento de um modelo que já não atende seus povos nem sustenta o peso de suas promessas.
Esse “crepúsculo do Ocidente” é, ao mesmo tempo, a queda de um mito e a abertura de um novo capítulo: o advento do mundo multipolar.
O mito liberal em frangalhos
A chamada “ordem mundial liberal” nunca foi um consenso universal. Nasceu do pós-Guerra Fria como um arranjo para consolidar o domínio ocidental.
Hoje, quando essa retórica já não se sustenta, observa-se a fragilidade de suas bases: a elite liberal, que outrora proclamava a defesa da liberdade, igualdade e democracia, tornou-se uma casta isolada, mais preocupada com a preservação de seus próprios privilégios do que com o “bem comum”.
Analistas identificam um paradoxo evidente. Em nome da liberdade, surgiram diversas restrições sob a justificativa de proteger a democracia, práticas de moderação de conteúdo em plataformas digitais, muitas vezes acusadas de censura seletiva e exclusão tornaram-se recorrentes; além disso, o pluralismo foi substituído pela predominância da propaganda segmentada.
Como consequência, observa-se um distanciamento crescente entre governantes e governados, o que compromete a legitimidade do contrato social que sustentava o sistema.
A obsessão em dividir o mundo entre “democracias” e “autocracias” mostra o quanto o Ocidente perdeu a capacidade de compreender a complexidade do cenário global.
Essa crise de legitimidade tem epicentro nos Estados Unidos, onde os sinais do declínio se tornam cada vez mais fortes e já não podem mais ser ignorados.
A doença americana
Donald Trump não é a causa da decadência dos EUA, mas, sim, seu sintoma mais visível. Seu estilo transacional e caótico expôs ao mundo a fragilidade do que ainda se vende como “liderança global”.
Os fundamentos domésticos americanos estão corroídos: uma dívida colossal, um sistema político submetido a lobbies que compram decisões no Congresso e a perda da autoridade moral que antes era sua maior arma.
Basta lembrar da cumplicidade de Washington com guerras e massacres recentes, como o genocídio em Gaza, para perceber que a retórica dos “valores universais” se evaporou.
Ao agir de forma agressiva e unilateral, Trump não desafia uma ordem externa, mas acelera a implosão da ordem que seu país liderou, impulsionando a formação de alternativas, como os BRICS, que ganham mais coerência e coesão justamente pela incapacidade americana de articular uma ordem estável.
O vazio europeu
Do outro lado do Atlântico, a Europa enfrenta sua própria encruzilhada. Presa a uma dependência quase estrutural dos EUA, não consegue projetar um caminho autônomo.
A frase da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen – “o Ocidente como o conhecíamos não existe mais” – talvez tenha sido a confissão mais honesta de uma geração de políticos incapazes de oferecer alternativas.
A Europa está vulnerável em três dimensões:
- Dependência energética e de segurança: sem os EUA, o continente não tem como sustentar um “modelo operacional viável”.
- Fraqueza industrial e militar: o complexo militar europeu pensa mais em lucros corporativos do que na defesa de interesses nacionais.
- Refém do conflito ucraniano: tornou-se presa de compromissos irreais, sem margem de manobra para negociar uma saída própria.
Nesse vácuo, a Europa se encolhe e acelera sua irrelevância. Em vez de aproveitar a turbulência americana para buscar estratégias próprias, dobra-se ainda mais à lógica falida da militarização.
O mundo observa
O declínio das potências ocidentais é amplamente observado no cenário internacional, onde diferentes atores acompanham o processo e participam ativamente da redefinição dos rumos globais.
A multipolaridade não é mais um ponto num futuro distante, é a realidade em plena emergência. América Latina, África e Ásia já movem as peças no tabuleiro, não como satélites, mas como atores que ditam rumos.
Pós-Ocidente: o desafio do lugar perdido
O Ocidente, que por séculos impôs sua vontade sobre o mundo, precisa agora encarar um dilema profundo: aceitar que sua era de hegemonia acabou e aprender a coexistir em pé de igualdade ou insistir em restaurar um passado que não volta mais e condenar-se à irrelevância.
Como disse Paulo Nogueira Batista Jr., o “baile dos vampiros” que simbolizou séculos de exploração e supremacia já se aproxima do final. O problema é: será que o Ocidente está disposto a aprender a dançar em um ritmo que já não dita?
Navegando em um mundo incerto
Testemunhamos uma transição histórica fundamental – a passagem de uma ordem unipolar, liderada por um Ocidente “soberbo”, para um sistema multipolar mais complexo, fragmentado e contestado.
Essa nova realidade, sem dúvida, traz mais incertezas e riscos. Contudo, ela também carrega o potencial de ser mais justa e representativa. A era em que um pequeno grupo de nações podia ditar as regras para os demais está terminando.
Em um mundo onde nenhuma potência pode impor unilateralmente sua vontade, a negociação torna-se imperativa. Este novo sistema, embora caótico, é, portanto, “de fato mais democrático” e “mais justo que seus predecessores”.
É claro, este mundo multipolar emergente não é uma panaceia. Ele traz consigo o risco de conflitos regionais não mediados, a erosão de normas humanitárias globais e a formação de esferas de influência conflitantes. No entanto, seu potencial de distribuir poder e voz de forma mais equitativa entre as nações é uma correção histórica necessária.
REFERÊNCIAS
(1) https://valdaiclub.com/events/own/valdai-2025/
(2) https://valdaiclub.com/a/chairman-speech/has-the-21st-century-begun/ – Andrey Bystritsky
(3) https://valdaiclub.com/a/highlights/tectonic-shifts-in-geopolitics/ – Paulo Nogueira Batista Jr.
(4) https://valdaiclub.com/a/highlights/multipolarity-and-the-charter-international-system/ – Ricardo Sakwa
(5) https://valdaiclub.com/a/reports/dr-chaos-or-how-to-stop-worrying/ – Oleg Barabanov, Anton Bespalov, Timofei Bordachev, Fyodor Lukyanov, Andrey Sushentsov e Ivan Timofeev